Fernando60 20/07/2020
Tão gostoso que dá pena de terminar.
Misteriosos são os caminhos da literatura e bem-aventurados os que por eles se perdem...
Para chegar a esse livro adorável percorri um longo caminho, iniciado com "Os meninos da Rua Paulo, de Ferenc Molnár, o único livro que Luiz Schwarz, dono da Companhia das Letras, ganhou de presente do pai dele. A tradução foi feita por Paulo Rónai e, pelo prefácio tão bem escrito, fui atrás da biografia dele que saiu recentemente pela Editora Todavia. Paulo Rónai foi uma pessoa fascinante, um daqueles intelectuais húngaros que já não se fazem mais, e a mencionada biografia muito me entreteve nos horários de almoço, até que um dia, sem qualquer aviso, chegou a pandemia da COVID-19, o teletrabalho forçado e então o livro ficou preso na gaveta do serviço. Saudoso do livro isolado na repartição inacessível, acabei por descobrir essa delícia de livro de Nora Rónai.
Para quem não sabe, Nora Rónai foi esposa de Paulo Rónai, mas o livro trata mais da época em que ainda era Nora Tausz, da criança feliz à jovem que emigrou com seus pais para o Brasil. Da infância em Fiume, que outrora pertenceu à República de Veneza, cheia de descrições das idas à praia e passeios gostosos com os pais, às intermináveis brigas com o irmão mais velho Giorgio, e às inúmeras surras que ambos levavam do pai, por causa do temperamento voluntarioso dos irmãos, aos poucos vamos sendo apresentados aos Tausz. Ao pai Edoardo, à mãe Iolanda e aos irmãos Nora e Giorgio.
Quando Nora ainda era criança a família se mudou para Budapeste, e então acompanhamos a nova vida deles, sendo que a pequena Nora teve que aprender a falar Húngaro "na marra" e já se apresentar na escola. A vida feliz é interrompida bruscamente pela Segunda Guerra Mundial e então acompanhamos a correria de Nora e dos Tausz para reagir face aos desafios mortais que o Nazismo trouxe. Muita correria, muita insegurança e vamos no livro com o coração apertado, junto com eles, tentando sair do coração da Hungria e das garras do nazismo, rumo a Portugal e depois ao Brasil, onde inéditos desafios tupiniquins aguardavam os Tausz.
É um livro que flui fácil e agrada todo o tempo. Apesar do tema pesado, pois eram um família de judeus tentando fugir de um destino fatal, o olhar de Nora sobre o passado é suave e em muitas ocasiões chega a ser divertido. É como se ela só tivesse guardado as coisas boas sobre as ocasiões e as pessoas (à exceção de uma ou outra professora mais malvada, que ainda hoje não foram perdoadas).
O ponto alto do livro, na minha opinião, é que ele trata da vida de Nora e dos Tausz, Fiumanos e judeus que se viram tragados pelo rolo compressor da Segunda Guerra Mundial, mas desde as páginas iniciais temos a sensação de que aquela poderia ser a nossa família e a nossa vida. Edoardo e Iolanda foram os pais de Nora, mas pela forma como ela os descreve, tive a sensação de que poderiam ser meus pais. Giorgio é irmão dela, mas após algumas páginas é como se fosse nosso irmão também.
Para quem curte livros pelo objeto em si, o que posso dizer é que a edição da Casa da Palavra é maravilhosa, daquelas que merece um lugar na estante. Uma capa que nos induz à cumplicidade, papel de qualidade, com gramatura superior, fontes grandes, muito bem diagramado e editado. Como um plus, o pai de Nora, Edoardo, era um excelente fotógrafo amador e a obra é enriquecida com fotografias originais, de época, tiradas por ele, o que nos dá a agradável sensação de estar folheando um álbum de família.
Como eu disse, é a estória da família de Nora, mas poderia ser a estória de qualquer um de nós, por isso acho que é um livro muito humano. Em suma, um livro muito simpático, bem escrito e uma estória interessante, num formato de muito bom gosto. Uma delícia em forma de livro!
Paulo Rónai certamente teria ficado orgulhoso. Recomendo! :-)