Lucas 27/03/2017
Parte final de uma colossal aula de história
O jornalista (e agora grande biógrafo e pesquisador) Lira Neto encerra a sua trilogia sobre a vida de Getúlio Vargas com uma obra à altura das duas anteriores: um livro mais enxuto, que transborda a tensão, o drama, o conflito e, essencialmente, o cansaço que o histórico líder gaúcho sofreu em seus últimos 9 anos de vida.
Após uma humilhante deposição do poder em 1945, em um golpe comandado, entre outros, pelo militar Eurico Gaspar Dutra que assumiu o governo após uma eleição direta, Vargas partiu para um auto-exílio em sua amada cidade de São Borja, na fronteira gaúcha com a Argentina. Amado pelo povo e odiado pela mídia, ele, mesmo à distância, possuía enorme influência na política nacional, reagrupando líderes e assumindo compromissos. Lira Neto lança luz ao "novo Getúlio" que surgia, menos pujante, mais frágil física e até psicologicamente, mas ainda contraditório e muito habilidoso na arte do poder.
A história de todo esse tenso fim de vida é conhecida minimamente pelos brasileiros. É sabido de antemão que Getúlio vem a se suicidar em 1954 (após uma volta triunfal e democrática ao poder), em meio a fortes pressões (muitas das quais justas) da oposição e da mídia, controlada por grupos contrários ao presidente. Sua força, nesse contexto, residia nas ruas: justa ou não, a razão da continuidade do seu segundo governo era o povo, em meio a toda essa ebulição política. Este período final da vida do líder caudilho é o mais conhecido de sua história pessoal, daí a dificuldade prévia que o futuro leitor imagina de Lira Neto tornar a narrativa ainda interessante.
Para alegria dos amantes de documentários e biografias, o autor não só consegue manter esse ritmo apaixonante que o caracterizou nos primeiros livros como transpassa nas entrelinhas o drama pessoal de Getúlio. Se essa parte da vida do líder é a mais conhecida, Lira Neto debruça-se nos detalhes que formaram todo o contexto político da época: a postura de Vargas nos momentos mais tensos, várias versões do que realmente pode ter ocorrido no Atentado da Rua Tonelero, evento decisivo ao suicídio e que não é muito difundido na história, a intensificação da relação do exilado e depois presidente com a sua filha Alzira (tacitamente, ela era o braço direito de Getúlio durante o "retiro"), o relacionamento dele com a sua guarda pessoal, entre outros aspectos não tão divulgados e até mesmo desconhecidos daqueles tempos até então são relatados com minúcia. O autor, em resumo, pormenoriza brilhantemente todos os fatos que levaram Vargas ao poder e os que causaram a sua consentida queda.
Alzira Vargas, filha do meio de Getúlio com a esposa Darci Vargas, é a "coadjuvante de luxo" nessa obra. Seu papel de interlocutora e até conselheira do pai é genialmente retratado pelas dezenas de cartas trocadas entre eles de 1945 a 1950 (Alzira permaneceu no Rio de Janeiro enquanto o pai estava afastado da vida pública). Sua habilidade única de leitura de cenários, de elaborar conjecturas e de julgar corretamente aliados e adversários fazem dela uma versão feminina perfeita do presidente. O autor soube com maestria explorar esse material pouco conhecido, que está no acervo do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas. As correspondências entre eles eram repletas de metáforas práticas que resumiam bem o cenário político da época, sendo o grande destaque da primeira metade do livro.
No sentido prático, a obra retrata com muita propriedade o peso da mídia no ambiente político nacional. O fim da ditadura Vargas trouxe consigo o término da censura, muito forte especialmente no meio impresso. Com isso, praticamente toda a imprensa carioca era contrária a Getúlio: antes e durante o seu segundo mandato, foi estarrecedor o bombardeio de críticas, personificadas na figura de Carlos Lacerda, jornalista que se tornou deputado e talvez o maior oposicionista de um governo na história da política brasileira. Sua verve, eloquência e ótima capacidade oratória faziam de suas aparições, seja na tribuna do Palácio Tiradentes (então sede do legislativo nacional), seja em editoriais do seu jornal (Tribuna da Imprensa) verdadeiros espetáculos midiáticos. No entanto, Lira Neto deixa muito claro na obra que muitas dos questionamentos de Lacerda eram consistentes, não condenando enfaticamente o teor de suas críticas. Isto tudo acaba trazendo uma grande reflexão ao ambiente político atual, cujos questionamentos a respeito de uma mídia livre e isenta são comuns: nenhum tipo de aparente "ufanismo" em qualquer ramo jornalístico atual chega perto da contundência e até deselegância com que a imprensa da época lidava com um governo problemático, mas com grande apelo popular.
A grande conquista de Lira Neto com estes três livros não reside no detalhamento, no ângulo por vezes romanceado na descrição de certos fatos ou simplesmente no contar a história da vida do maior político brasileiro do século XX. Sua grande vitória foi transformar uma pomposa biografia em um "pequeno curso didático" de parte da história democrática nacional, realçando o fim da República Velha, que provocou imensas alterações na política nacional, trazendo um sentido maior de unidade ao Brasil. A isenção de seus relatos permite que até mesmo quem nunca tenha admirado o ilustre gaúcho de São Borja leia toda a trilogia sem se incomodar ou cansar. E o que torna isso tudo ainda mais incrível é que o autor não tratou de endeusar ou demonizar a figura de Vargas. Os livros fornecem apenas insumos para o leitor defender ou acusar as práticas getulistas.
Demagogo ou "pai dos pobres", hábil ou "mãe dos ricos", independente de opinião, algo é incontestável: Getúlio Vargas foi o maior político da história da República brasileira. Sua ações nem sempre eram as ideais, mas diante de tudo o que foi exposto por Lira Neto, duas coisas devem defini-lo eternamente: o respeito e o amor à pátria.