Luis 15/10/2014
A História escrita com tinta de sangue.
Não faz nem meia hora que terminei a leitura do seminal Getúlio,1945-1954- Da volta pela consagração popular ao suicídio (Companhia das Letras, 2014). O impacto do terceiro tomo da obra hercúlea do jornalista Lira Neto é imenso. Ao revisitar a trajetória do mítico Presidente sob a forma de uma biografia à imagem e semelhança dos trabalhos jornalísticos definitivos, como os assinados por Fernando Morais e Ruy Castro, o escritor cearense , embora ainda com muita estrada pela frente, já justificou com sobras a entronização do seu nome no panteão dos grandes ensaístas.
A edição traz surpresas mesmo para aqueles já familiarizados com a historiografia do período. Pode-se citar como exemplo, a intensa articulação do próprio Getúlio nos longos períodos de retiro em São Borja entre 45 e 50. Até então, a impressão, pelo menos no meu caso, era de que o ex-Ditador havia sido envolvido no esteio dos acontecimentos, como uma espécie de passageiro no ônibus do queremismo pilotado por seus correligionários. Na verdade foi justamente o contrário.
Durante todo o seu longo retiro, interrompido por ocasionais retomadas do mandato de Senador pelo Rio Grande do Sul e pela participação nas campanhas de 1947, Vargas seguiu sendo protagonista de uma intensa confabulação política, num jogo permanente de avanços, recuos e dissimulações que tanto marcaram o seu estilo por 15 anos à frente do Catete. Nessa lógica acabou sendo o ausente mais presente da vida pública nacional do período, sendo inclusive responsável direto pela reviravolta no cenário eleitoral de 46, ao recomendar o voto em Eurico Gaspar Dutra, derrotando o flagrante favoritismo do Brigadeiro Eduardo Gomes (Vote no Brigadeiro que é bonito e solteiro). E por falar no adversário do Marechal, Lira desencava a deliciosa história, embora já parcialmente conhecida, de que o popular doce foi inventado durante a campanha e batizado em referência a Eduardo Gomes, embora a razão seja controversa : O Brigadeiro teria sido ferido nas partes baixas durante o episódio dos 18 do Forte, em 1922. Como se sabe, a receita de brigadeiro não leva ovos, daí a homenagem...
Voltando ao tema principal, um dos gols de placa do livro foi a utilização da farta correspondência entre Alzira Vargas e Getúlio. Por sinal, a filha do Presidente revela-se uma figura de interesse histórico notável, legítima herdeira da aguda sabedoria política do pai. Alzira atuou como conselheira, interlocutora e destacou-se nas negociações que antecederam a candidatura Getulista. Não dá para entender os últimos anos da vida pública de Vargas sem passar por Alzira. Nesse sentido, caberia inclusive uma biografia à parte.
Também é esclarecida a colcha de alianças que juntou Getúlio a Ademar de Barros, governador de São Paulo (do célebre slogan, Rouba, mas faz). Para entender a parceria, Lira Neto destrincha os dois processos eleitorais de 1947 que tiveram a participação de Getúlio. Em ambos os casos, os candidatos apoiados por Ademar ganharam em detrimento dos aliados ao PTB, mesmo com a participação de Getúlio na campanha. Ali, o líder trabalhista viu que ganhar São Paulo era essencial às suas pretensões de voltar ao Catete.
A corrida eleitoral de 1950, a mais intensa que o pais já vira até então, é descrita de forma empolgante, ressaltando a grande e , até então inédita, participação popular, tendo no páreo além de Getúlio, Cristiano Machado pelo PSD (que deu origem ao verbo cristianizar, quando o partido abandona o seu candidato oficial, no caso, Cristiano foi sacrificado em favor de Vargas) e de, mais uma vez, Eduardo Gomes, pela UDN.
Mas a joia da coroa é mesmo o relato dos dramáticos lances do segundo governo, vivido praticamente em estado de crise permanente, em especial, os trágicos episódios de agosto de 54.
O livro , embora não chegue à qualquer conclusão que desminta a história oficial, não omite as polêmicas sobre o atentado da Tonelero, o tiro de misericórdia no governo. Há depoimentos de testemunhas que colocam em dúvida o ferimento sofrido por Lacerda e até mesmo a autoria dos disparos que mataram o Major Ruben Vaz. Por outro lado, todo o frenesi da caçada aos responsáveis liderados pelo IPM instalado pela Aeronáutica, culminando com a detenção do Anjo negro, Gregório Fortunato, é narrado em ritmo de thriller.
O texto vai crescendo em tensão até chegar à madrugada de 24 de agosto, com a lendária reunião ministerial, convocada às pressas após o ultimato das forças armadas pela renúncia de Getúlio. A descrição coloca o leitor na sala onde o destino do governo, e por extensão do Presidente, se desenhou. De início à portas fechadas com seus ministros ( a exceção foi Vicente Rao, ausente da cidade) , a reunião ganhou em dramaticidade quando Alzira Vargas a invadiu, trazendo em seu encalço familiares e assessores. Não se contentando em ouvir as ponderações de cada um, ela coloca contra a parede os ministros militares, invocando a resistência. Tancredo Neves , sentado à esquerda do Presidente, Osvaldo Aranha, à direita, foram dos poucos que encaparam a tese. Getúlio, supostamente o maior interessado, parecia alheio a tudo. Já havia tomado a sua decisão.
Com o acirramento dos ânimos, o cansado Presidente resolve encerrar a reunião acatando a solução dada pelo genro , Amaral Peixoto : o pedido de licença enquanto as investigações não terminassem. Às 4:20 da manhã Getúlio se retira para os seus aposentos e deixa a tarefa de redigir a nota de licença para Tancredo Neves, Alzira e alguns outros auxiliares. No livro não consta, mas outras fontes indicam que o Presidente saiu sob aplausos. Seriam os últimos de sua vida.
Por volta das seis da manhã, dois oficiais vão ao Palácio convocar Bejo Vargas para depor no IPM do Galeão. Logo depois, chega a noticia de que os Generais não concordam com a licença. Querem a renúncia. Ás 8:35 da manhã, o tiro.
Lira Neto não entra no mérito da autoria da carta testamento, não custa lembrar que à essa altura várias cópias já circulavam pela cidade ( o que facilitou sua rápida difusão pelas rádios), além daquela encontrada à cabeceira do morto. Todas datilografadas. Getúlio não batia à máquina. Hoje, aceita-se que a carta teve co-autoria de José Soares Maciel Filho, que provavelmente a datilografou. O fato é que um assessor de Getúlio, cerca de 10 dias antes do suicídio, já havia encontrado entre os escritos do Presidente , trechos que depois seriam parte do famoso texto, dando a clara dimensão de que o ato não foi fruto de um momento de desespero, antes, foi uma ação política, pensada e, apesar de trágica, fria. Como quase toda a atuação de Getúlio na vida pública.
Independentemente de qualquer coisa, a Carta Testamento é o maior documento político da história do Brasil e, se não inteiramente escrita por seu signatário, traz em cada parágrafo a tinta banhada no sangue do velho caudilho gaúcho.