spoiler visualizarThiago.Villar 26/04/2015
Uma experiência incrível
Você pode ler diversos textos formidáveis na forma e no estilo, textos incríveis, mas não necessariamente passar por uma experiência igualmente maravilhosa. Rani é desses textos que são simples, mas mostram muito bem ao que vieram: uma excelente experiência literária infanto-juvenil.
Soube desse livro por uma crítica na Carta Capital, que chamava-o de o Harry Potter brasileiro. Sou obrigado a discordar completamente dessa comparação, essa descrição simplesmente não faz jus à obra. Para além de J.K. Rowling, Rani parece uma grande mistura de todas as fórmulas que fazem sucesso com o público jovem, tanto na literatura quanto na mídia pop em geral, como se alguém tivesse colocado Artemis Fowl, Diário de um Banana, Harry Potter, Douglas Adams, Phillip Pullman, Crepúsculo, A Culpa é Das Estrelas, Watchmen, A Lenda de Korra, e tantos outros, em um grande liquidificador e batido, pegando apenas o melhor de cada. Mas de alguma forma magistral tudo isso é muito bem costurado, com uma história bastante consistente e – ainda que você perceba diversas influências de grandes nomes – Jim Anotsu traz consigo um sopro de novidade, deixa sua marca em diversos momentos onde quebra os moldes, é inovador e opta caminhos não tão usuais.
De cara temos um elemento bastante interessante, assim como Philip Pullman em A Luneta Âmbar, Jim Anotsu traz em cada começo de capítulo alguns pequenos versos. A diferença brutal, entretanto, é que neste são trechos de músicas – quase sempre rock. Por vezes me pequei pausando a leitura para dar play em algumas músicas ou me peguei cantando “I wanna rock n roll all night” e “California here we come”. Foram surpresas bastante agradáveis que me trouxeram bastante nostalgia e diversão apenas por estarem lá.
Da mesma fora, temos caixinhas de diálogo, que pipocam nas páginas, por vezes quebrando a quarta barreira, trazendo consigo alguma informação “a mais” – quase sempre menos importante, ou com algum tipo de humor mais pueril (e não menos divertido), como a receita do sanduíche famoso da cidade, a lista de livros favoritos de Rani ou um “Você não sabe de nada, Jon Snow”. Por vezes você encontrará “materiais anexos” entre as páginas do livro, como um teste vocacional, um contrato para fazer parte do grupo de Rani, ou o caderno de perguntas da turma. Foi como ter um pouco de O Diário de um Banana, Animais Fantásticos e Onde Habitam, e Watchmen em um só lugar.
Como você já deve ter percebido nessas poucas linhas, o texto é excessivamente referencial. Acredito que esse é um dos melhores elementos do livro, que em alguns pontos parece retirado de uma conversa de mesa de bar com seus melhores amigos. Tudo parece muito familiar, o que é um ponto positivo: imersão no universo se torna muito mais fácil, e a realidade fica muito mais factível e verossímil. Os jovens escutam Blink, veem South Park e recitam uma paródia do moto da Equipe Rocket. São “gente como a gente”, o que os torna muito humanos. Por um momento você quase esquece que se tratam de vampiros, lobisomens, demônios e xamãs.
O humor é um ponto altíssimo, vai desde de piadinhas pueris até sofisticadas ironias narrativas. Você inevitavelmente vai se pegar rindo. O que torna a leitura muito agradável e divertida, mas sem parecer que há um comic relief proposital e forçado para que você esqueça que há um serial killer a solta. Infelizmente, outros aspectos da narrativa não foram tão bem desenvolvidos. Falta um suspense, um drama, um pouco de feel trip – e é uma história com bastante espaço para tudo isso.
Ainda assim, vale dizer que texto trata bastante de temas sensíveis. A começar pela protagonista, Rani é mulher, negra, ateia, fruto de uma unidade familiar não tradicional (a saber, seus pais são separados, e ela mora com o pai), com uma orientação sexual um tanto quanto ambígua. Tudo isso é apresentado com a maior naturalidade do mundo. Embora tratado superficialmente, sabemos que Rani já sofreu com preconceito, foi vítima de bullying, piadas racistas, é assediada na rua por ser mulher, e simplesmente não entende como as pessoas podem desrespeitar umas as outras apenas por serem diferentes. É um texto que grita diversidade, representatividade e tolerância, sendo por esse motivo uma joia raríssima.
O texto é fantástico, sim. Mas há todo um contexto, subtexto, hipertexto que torna toda a leitura muito rica. Rani é tudo que eu gostaria de ver em um livro só – e coisas que eu nem esperava encontrar! Leitura recomendadíssima e tenho fortes esperanças em uma continuação.