Ricardo Santos 12/10/2015humor, drama e suspenseDepois de ler o romance do americano Andy Weir, dá para entender por que o livro fez tanto sucesso. As pessoas gostam de histórias de superação. E aqui temos a tentativa de sobrevivência mais extrema na literatura dos últimos anos.
Três elementos fizeram com que o livro funcionasse bem: o protagonista, a estrutura da narrativa e a pesquisa.
Este é um romance de ficção científica hard. A ciência não serve apenas como pano de fundo, nem sua aplicação é meia-boca. Podemos até dizer que, mais do que o astronauta Mark Watney, a ciência é o personagem principal, como um todo, pelos esforços do próprio Watney, da NASA, da tripulação da Hermes e de outros cientistas.
Porém, diferente de outras ficções científicas hard (excelentes, mas que podem ser bem áridas), o equilíbrio entre humor, drama e suspense de Perdido em Marte foi o que conquistou tantos leitores ao redor do mundo. Este é um romance hard feito para as massas. Não tomem isso como algo negativo. Estou apenas avaliando as intenções do autor. Ele quis escrever uma FC que tivesse maior repercussão, sem comprometer tanto a integridade científica.
Weir já afirmou que a ciência do livro é 90% possível. No restante, ele tomou algumas liberdades em função da trama. Por exemplo, a tempestade de areia do início, o que gera todo o conflito do romance. A atmosfera de Marte é rarefeita demais para criar um fenômeno tão violento.
Achei os primeiros capítulos cansativos, apenas com os diários de bordo de Watney,em primeira pessoa, relatando seu isolamento. Quase abandonei o romance. Gosto de ciência, mas o texto não era sedutor o suficiente para superar um bom livro de divulgação científica. Então vieram os capítulos envolvendo a NASA e a coisa ganhou ritmo.
Uma grande sacada do autor foi a variação da estrutura narrativa. Acompanhamos a história pelos diários de bordo de Watney, trechos em terceira pessoa, chats, e-mails e outros tipos de comunicação. Isso faz com que as informações científicas se tornem mais interessantes de acompanhar e também dá voz a outros personagens. Mesmo que não sejam muito bem desenvolvidos, cada um cumpre sua função na trama. E há bons momentos de humor, reflexão e suspense surgidos de falas, pensamentos e ações desses personagens.
Muitos criticaram o tom otimista de Watney. Um cara numa situação extrema e inédita que leva as coisas, muitas vezes, na brincadeira. O próprio autor disse que não queria escrever um livro sombrio. Há muitos perigos e incertezas no romance, mas nada que realmente abale o moral do marciano. Weir justifica esse comportamento pelo fato de Watney ser um astronauta altamente treinado e com perfil psicológico acima da média. E também porque o romance tem um senso de aventura de clássicos da FC e de programas espaciais pioneiros que o autor quis resgatar.
Perdido em Marte é uma FC prática, digamos assim. Não é transcendente nem contestadora. É uma diversão muito bem executada. Que vale a leitura.
Já o filme, infelizmente, não me deixou muito satisfeito. É aquele velho problema de querer ser fiel à obra de origem, sacrificando a integridade do derivado. Quando o filme termina, fica claro que havia muita coisa do livro para resumir em pouco mais de duas horas. Não funciona. Ainda mais para quem leu o romance.
Foi muito bacana ver na tela momentos-chave do livro tão bem produzidos. Mas, na maioria das vezes, o filme saiu perdendo por estar tão amarrado ao livro. Tiveram que correr para fechar uma história minimamente coerente e deixaram um monte de coisas de fora. A principal delas : as soluções científicas.
No livro, as explicações são mais detalhadas. O que, em alguns trechos, pode irritar o leitor acaba se mostrando uma ferramenta narrativa muito eficaz por dar tensão aos rumos da trama, criando reviravoltas criativas. No filme, o que entrou em termos de ciência foi explicado às pressas, ou não foi explicado de forma alguma.
Outro ponto problemático: os personagens. Se no livro eles já são bidimensionais, com seus bons momentos, é verdade, no filme, o espaço para cada um é ainda mais reduzido e raso. Ficou até constrangedor ver atrizes e atores tão competentes sem muito o quê fazer. A salvação é que o maior tempo de tela é de Matt Damon, como um Mark Watney bem próximo do protagonista do livro. Um cara cheio de personalidade, geek, meio rebelde e boca suja.
A produção é muito bem cuidada. Bela fotografia, direção de arte com visual aprimorado, trilha sonora eficiente, efeitos especiais e sonoros bem integrados à trama. A montagem é excelente em sequências decisivas, mas deixa a desejar em cenas envolvendo a Terra e a NASA, com desenvolvimento confuso e cortes abruptos.
Ridley Scott fez uma direção discreta. Ao contrário dos excessos de filmes anteriores, como Êxodo e Prometheus. Pena que o roteiro do ótimo Drew Goddard (O Segredo da Cabana, a série do Demolidor) teve um sucesso parcial na adaptação do livro.
O grande mérito do filme é tratar a ciência não como o vilão, mas como o mocinho, mesmo que um mocinho bastante problemático.