Mauricio (Vespeiro) 17/07/2017Sobre como uma mãe destruiu toda uma famíliaA obra-prima de Milton Hatoum definitivamente mereceu todas as premiações e elogios. Com uma narrativa primorosa, o autor nos situa na Manaus pós-Segunda Guerra e conta a história de uma família disfuncional. Um drama que parece ser conduzido a extremos, mostra nada menos que a realidade de muitas histórias de vida. E o texto de Hatoum é meritório por isso, ao descrever com maestria um drama familiar comum. Antes de escrever, procurei ter a experiência mais ampla sobre a obra. Li o livro, deliciei-me com a HQ adaptada por Gabriel Bá e Fábio Moon (curiosamente irmãos gêmeos e ilustradores) e assisti à ótima minissérie produzida pela Globo.
[SPOILERS] A história é contada por Nael, filho da empregada da casa, Domingas. Ele ouviu e presenciou a maioria das histórias e conta a busca pelas suas origens, por saber quem é seu pai, informação sonegada por sua mãe até quase o fim da vida. Entre idas e vindas no tempo, conhecemos desde o início a relação do casal de libaneses Zana e Halim, da vida conturbada de seus filhos gêmeos Yahub e Omar, da filha Rânia, de Domingas e Nael, além de outros personagens interessantes criados pelo autor. A despeito do pai ser um frouxo dentro de casa, a “bananificação” do chefe da família deveu-se ao seu amor cego e debilitador por Zana. A matriarca manipuladora e possessiva, depois de perder o venerado pai, amargurou-se para o mundo e suas atitudes promoveram um efeito dominó arrasador na vida de quem esteve por perto. Halim, apaixonado e dedicado pela esposa, não queria ter filhos (“Filhos vão desarmar nossa rede!”) e Zana vaticinou: teremos três. A estrutura do casal começaria a ruir ali mesmo. Os gêmeos vieram e a mãe toma mais uma atitude venenosa: tem um preferido, Omar, e um preterido, Yahub. Cisão feita, obviamente que as diferenças foram se acentuando. Omar, protegido, virou um “vida loka”, agressivo, bêbado, inconsequente e sem limites. Yahub, tímido e retraído, dedica-se aos estudos. Brigas, separações e o ódio cresce entre os dois. O pai molenga até que tentou, mas a postura da mãe, ao proteger Omar de tudo e de todos, acaba por estragar a família inteira. Halim nutre o sonho de recuperar o amor de sua musa, mas o inferno que se criou na casa torna isso impossível. Nael, o narrador da história, sabe que seu pai é um dos gêmeos. Torce que seja Yahub, pois odeia Omar. Halim desiste de lutar e morre de desgosto. Domingas, cansada e desorientada, também cede. Antes de morrer, revela o mistério (de forma branda) a Nael. Yahub desapega-se da família e evolui, vivendo em São Paulo. Omar se autodestrói e junto com ele arrasta quem consegue para os bueiros de Manaus. Por fim, sua mãe se consome em meio ao seu egoísmo, apodrece junto com a casa e morre num hospital.
O livro nos brinda com uma narrativa saborosa e ricamente detalhada sobre a miséria relacional daquela família, além de nos conduzir por um passeio numa Manaus pós-Segunda Guerra. A adaptação para os quadrinhos foi feita com uma sensibilidade ímpar. Traços simplificados, contraste de preto e branco, luz e sombra e riqueza de detalhes. Conseguiram sintetizar o espírito da história num resumo belíssimo, muitas vezes sem diálogos, apenas com a quietude eloquente de uma imagem. A série da Globo foi muito bem produzida, com uma surpreendente atuação de Cauã Reymond representando os dois irmãos na idade adulta. Antônio Calloni, como o Halim de meia-idade também esteve soberbo (o Halim mais velho foi feito por Antônio Fagundes). Enfim, uma grande obra mereceu grandes adaptações e foi brindada com êxito. Em breve lerei “Cinzas do Norte”, outra obra premiadíssima de Milton Hatoum. As expectativas são enormes...
Nota do livro: 6,92 (3 estrelas)
Nota da HQ: 6,54 (3 estrelas)