Paulo Silas
28/11/2018Um livro que diz muito sobre muitas coisas. Diversas são as passagens que tratam do âmago de algo. Mas, qualquer seja a coisa de que se trate num capítulo ou numa página, é o enfoque no aspecto emocional da questão que ganha revelo na escrita do autor. Não é por menos que a "grande força emocional" foi mencionado como um dos motivos que levou o autor a receber o Nobel de Literatura em 2017. Essa força é vista constantemente presente em "O Gigante Enterrado", um romance repleto de figuras de linguagem, confessadas ou mais disfarçadas, que dialogam com o leitor a todo instante na medida em que a bela e cativa história avança. O livro é um convite para uma imersão numa bela e comovente trama que toca a alma daquele que o lê.
A história se passa no medievo. Axl e Beatrice são um simpático e amoroso casal de idosos que vivem numa pequena localidade, recordando pouca coisa de suas vidas, mas unidos fortemente pelo amor que os envolve. O casal sente muita falta de um filho que se mudou para outro lugar há certo tempo, sentindo também que já passara muito tempo desde a última vez em que se viram. Sentem como fosse uma espécie de chamado que faz com que deixem o vilarejo em que habitam e partam rumo a moradia do filho. Assim inicia a jornada do casal e a grande trama da obra. Não apenas o casal é acometido pela ausência de memórias. Todos os habitantes daquela região sofrem com o mal da perda de memória. As coisas são esquecidas, não há mais recordações fidedignas de eventos passados. Pessoas, fatos e coisas simplesmente se esvaecem como uma névoa. A propósito, é justamente uma névoa que paira sobre todo o ambiente que é apontada como a responsável pelo esquecimento coletivo. Contam que a névoa é produzida pelo respiro de uma dragoa e que há um feitiço nesse processo que faz com as memórias se percam. A dragoa é a responsável pela ausência de lembranças, portanto - ou assim dizem. Enquanto seguem viagem, o casal de idosos acaba se encontrando com um cavaleiro que parece estar numa importante missão não revelada desde o início, mas que parece estar ligada a empreitada de acabar com a névoa do esquecimento, e para isso, só existe uma forma aparente: enfrentar a dragoa. É essa viagem, repleta de intempéries, de fábulas, de seres fantásticos, de lutas, de aflições, de magia, de resignação, que o leitor acompanha nas agraváveis páginas que compõem o livro.
"O Gigante Enterrado" trata do amor, do companheirismo, da guerra, do medo e, também e principalmente, da memória, individual e coletiva, das lembranças e da importância dessas. É melhor lembrar ou há situações em que o esquecimento pode ser conveniente e salutar? Qual o papel que a memória desempenha para a coletividade? E para a individualidade? Essas e outras questões são enfrentadas a contento na obra de uma forma que somente a boa literatura pode proporcionar. O êxito de Kazuo Ishiguro é múltiplo, pois consegue estabelecer uma excelente narrativa enquanto também dialoga refletindo com essas e outras importantes questões para o indivíduo e(m) sua coletividade. Um romance fantástico, digno, belo e cativante. "O Gigante Enterrado" possibilita um envolvimento profundo com a história ali contada e com muitas outras questões de fundo que merecem ser pensadas. Um excelente livro para se ler.