spoiler visualizarGabriel 28/11/2021
A linha entre o amor e o ódio é a lembrança
Desde o lançamento, eu namorei a capa desse livro, flertei com a edição caprichada que a editora preparou com os fios azuis da borda do papel, comparava à minha breve relação com o filme adaptado de outro livro do Ishiguro. Vários detalhes talvez até fúteis me encaminhavam a essa leitura, mas priorizei outros conteúdos, tomei outros rumos e, naturalmente, me esqueci desta meta, até o dia em que me lembrei. Aí vim a esquecer de novo e o processo se repetiu até que tomasse a atitude de obtê-lo e abri-lo.
A memória é muito enganosa, conhece sua influência e lábia. Colore um passado amargo e esconde verdades fundamentais, permitindo que as lacunas sejam revitalizadas com o fruto da imaginação. O Gigante Enterrado nos leva para uma jornada incerta passeando pelos espaços em branco de uma Bretanha pós-arthuriana, onde o massacre bretão teria promovido a união entre os diferentes povos da região em constante conflito. Beatrice e Axl são um casal idoso e codependente a um ponto extremamente físico em que a própria ideia da separação das mãos os assombra. É como se distanciar os dois pudesse principiar a erosão final de seus corpos frágeis.
Agarrados por sobrevivência e por amor, ambos saem de sua pequena comunidade bretã para visitar o filho que os aguarda, sem se lembrarem de seu rosto, de sua voz, do porque ele partiu ou da direção exata de sua morada. Ocorre que uma neblina misteriosa encobre todo o futuro Reino Unido com um esquecimento constante que desgarra as pessoas do fato presente. É preciso uma força improvável para obigar a mente a conservar as lembranças. Enquanto seguem sua trilha de destino misterioso, ambos conhecem Sir Gawain, personagem célebre da távola redonda, o guerreiro saxão Wistan e Edwin, um menino carregando uma ferida misteriosa.
Conforme a história avança, o jogo de cordialidades e mentiras vai desfiando até revelar não só as intenções de Gawain e Wistan, em constante oposição, como também suas verdadeiras opiniões. Apesar destes eventos parecerem abarcar o casal meramente por acaso, a verdade é que este passado oculto pela névoa diz mais respeito aos idosos do que se imagina.
Esta fina película de esquecimento, alega Gawain, é o que mantém este mundo distante de um novo derramamento de sangue. É a ausência de memória que inibe a vingança, que disfarça o cheiro cadáverico de uma terra que ainda mal absorveu completamente os incondáveis cadáveres no chão. Mas é este o objetivo de Wistan: promover a lembrança, provocar a fúria de uma ferida aberta ao sangrar uma segunda vez. Para que seus semelhantes saxões empunhem armas e odeiem os bretões. Para que toda violência tornada em paz não se justifique jamais, ocasionando mais violência.
Nós, como indivíduos, somos acúmulos de passado. O que somos, o que carregamos, do ritmo do passo à entonação da voz, a identidade é fruto de um legado da carne. Mas isso também determina nossa consciência coletiva, quem somos enquanto grupo, enquanto cidade, país e espécie. O que levamos adiante em nome da sobrevivência do corpo, mesmo que abandonando a alma, apenas para que no futuro nossos filhos tenham mais sorte.
Esta existência em socidade é posta em paralelo numa escala menor com a relação de amor entre Axl e Beatrice, a cumplicidade quase devota de ambos e como há sentimentos encobertos por esse amor que às vezes os espantam. Em certo momento Axl olha para sua mulher com mágoa, ressentido sem ter a menor ideia do motivo. Beatrice sente raiva e culpa, igualmente ignorante sobre a fonte desse desconforto. Porque, da mesma forma que Gawain defende ser necessário selar o passado para proteger o futuro, o livro nos desafia a considerar se é preciso abandonar o ontem para se sustentar uma relação humana.
Até que eles sejam encaminhados para seu destino por um gentil, mas inevitável barqueiro, Axl e Beatrice se pegam diante desse conflito. O que guiará o amanhã? As coisas que construímos ou a história das ruínas do processo? O que os guiará até o seu filho e para as respostas que querem sobre o que ocorreu? O futuro ou o passado? Essa resposta mora em algum lugar?
O Gigante enterrado é a pedra fulcral da civilização, descansando em terras fertilizadas pela morte e pela dor. O que floresce disso cabe aos que irão plantar ali também.
A única quebra mais agressiva em um livro tão contemplativo é a improvável cordialidade e cerimônia com a qual todos os personagens se comunicam. Me parece inverossímil acreditar que aqueles de séculos atrás eram menos inclinados à selvageria de qualquer espécie apenas porque seus nomes descansam em pedra. Mesmo as modulações emocionais dos personagens causam pouco impacto diante dessa lógica. Até a declaração mais apaixonada de ódio e uma promessa para a vida inteira de brutalidade parece uma carta de condomínio pela escolha com a qual Ishiguro decide olhar para o Reino Unido de outrora.