Lucas 06/09/2020
O cárcere, segundo um dos nossos melhores escritores: Resenha para os dois volumes
O alagoano Graciliano Ramos de Oliveira (1892-1953), tal como é a realidade da maioria dos seus conterrâneos nordestinos, teve uma vida difícil, mas recompensadora: por meio de um grande talento de narrador, ele deixou um vasto legado na literatura regionalista e que o rotula como um dos grandes escritores brasileiros do século XX (sua obra-prima, Vidas Secas, de 1938, é um livro que toca qualquer pessoa que o lê).
A tal dificuldade mencionada não se refere necessariamente a questões econômicas. Por mais que a família de Graciliano fosse enorme (ele era o filho mais velho e tinha quinze irmãos), o que se sobressai na biografia do autor são as dificuldades enfrentadas de ordem política. E é neste escopo que reside um dos seus trabalhos mais significativos, a obra biográfica Memórias do Cárcere, publicada em 1953, logo após a morte do escritor.
Memórias do Cárcere, dividido em quatro partes e dois volumes (ainda hoje é possível encontrar a obra separada em dois tomos, apesar de uma edição mais recente da Editora Record juntar todas estas quatro partes num único livro) é um marco literário nacional específico de um estilo que recebe o mesmo nome da obra. Se a atual Rússia, só para citar dois exemplos, possui o monumental O Arquipélago Gulag (Aleksandr Soljenítsin, 1973) e o cru e realista Memórias da Casa dos Mortos (Fiódor Dostoiévski, 1862), a obra de Graciliano Ramos não fica atrás em termos de oferecimento de uma visão peculiar que o presidiário possui quando privado de liberdade.
As memórias são fruto de uma experiência pessoal que o autor passou durante o ano de 1936. Então funcionário da Secretaria Estadual da Educação (ou "instrução", como era tratado) de Alagoas, Graciliano Ramos é preso, praticamente de uma hora para outra. Tendo já escrito dois romances (Caetés, de 1933 e São Bernardo, de 1934) e assim como seus contemporâneos, tais como José Lins do Rego (1901-1957), Jorge Amado (1912-2001) e Rachel de Queiroz (1910-2003), todos nordestinos, Graciliano Ramos vivia numa sociedade em ebulição: Getúlio Vargas, então presidente do Brasil, tinha acabado de enfrentar a Intentona Comunista de 1935, uma tentativa de golpe impetrada por membros do PCB, mas sem o apoio formal do partido. Contando com apoio logístico internacional (diga-se, soviético), seu líder, Luis Carlos Prestes (1898-1990), que já havia movimentado o país com a Coluna Prestes na década de 1920, acabou superestimando suas forças junto às unidades militares do Brasil (Prestes era um militar convertido ao comunismo): a tentativa de golpe fracassou por isso e por não ter despertado a comoção popular que se esperava. Getúlio Vargas ainda não era considerado um ditador propriamente dito (historicamente isso aconteceu em 1937, quando houve a instalação do chamado Estado Novo), mas a Intentona Comunista foi uma "centelha", que despertou preocupação do governo federal e conduziu ao regime ditatorial varguista iniciado em 1937 (também justificado em função do Plano Cohen, que previa um regime comunista-judaico no país, mas que hoje sabe-se que foi uma invenção dos militares para que justificasse a instalação da ditadura).
Inicialmente, Graciliano foi preso sob a alegação de ser comunista e por, presumivelmente, ter participado da intentona no ano anterior. Contudo, isto era falso: o escritor não tomou partido neste e em nenhum outro movimento revolucionário. Suas ideias eram contrárias ao getulismo, de fato (tanto que ele acabou ingressando ao PCB em 1945, quando este voltou à legalidade e viajou à URSS nos anos seguintes), mas a narrativa não oferece nenhum pormenor que justificasse a detenção do escritor. Aquele ano de 1936 viu as primeiras coações, ameaças e demonstrações de força de um militarismo que agia com estas intransigências para a manutenção da difundida "ordem", que nada mais era do que garantir que a população fosse "patriota" e apoiasse sem ressalvas as ideias governamentais em voga. Eram as sementes da ditadura promovida por Getúlio Vargas com o apoio de uma parte política e militar (não dissidente) da Revolução de 1930.
Tem-se, assim, um prelúdio que poderia caracterizar Memórias do Cárcere como, antes de um relato pessoal da detenção do autor, uma obra panfletária, um "grito de liberdade" com vieses comunistas. Mas Graciliano Ramos não à toa se tornou um dos grandes escritores brasileiros do século passado: sua obra não destila ódio, rotulações vazias ou paixões políticas enviesadas. É sobre, simplesmente (como se fosse fácil conceber no papel tamanhas experiências), um narrador que sofre as agruras de um embrionário regime ditatorial contando sua trajetória neste período, sem se vitimar ou culpar alguém (o "tratamento" que Getúlio Vargas recebe na obra simboliza isso).
Ao longo do tempo em que ficou preso, Graciliano encontra-se com vários tipos, desde brasileiros comuns a bandidos declarados. Seu olhar de contador de histórias se sobressai sobre a força de sua crítica política. Há momentos sim em que o escritor proclama sua revolta, mas não é este o fio condutor do que ele narra. Em verdade, as andanças que o autor/narrador fez quando detento sem que tenha sido proferida nenhuma acusação formal e as entrelinhas do romance solidificam um ar crítico "involuntário" e generalizado, que muito contribui para que Memórias do Cárcere seja um livro fundamental na literatura brasileira em todos os tempos, não apenas por este caráter opinativo indireto, mas principalmente por relatar a vivência do seu idealizador durante o início de um período difícil para os direitos e garantias fundamentais dos brasileiros.
O passar das páginas de Memórias do Cárcere vai revelando ao leitor nomes bem conhecidos no cenário da época. O mais popular deles é Olga Benário (1908-1942), a alemã que, seguindo ordens de Moscou, veio ao Brasil objetivando liderar a sonhada Revolução Comunista. Ela acaba se envolvendo com Luis Carlos Prestes e, em Memórias do Cárcere, sua presença se dá, inicialmente de forma indireta e descolorida (uma segunda abordagem sobre ela é mais incisiva, contudo). Sabe-se que ela descobriu que estava grávida na cadeia e foi deportada para a Alemanha nazista. Sendo comunista (e também judia), ela foi exterminada, após ter dado a luz à Anita Leocádia Prestes (1937-), atual historiadora e autora de alguns livros. Outro personagem, este menos famoso, mas mais presente nas memórias é Rodolfo Ghioldi (1897-1985), argentino representante da Internacional Comunista e que divide a cela com Graciliano Ramos.
Descrever de que forma Graciliano Ramos via estes e outras dezenas de personagens, conhecidos ou não, assim como pormenorizar a divisão simétrica que a narrativa traça através das quatro partes das memórias, seria trazer revelações que não podem ser aqui feitas para que não se abale nem mesmo minimamente a gratificante experiência de leitura. O cenário comum (prisões de mais oito décadas atrás) logicamente antecipa que não se trata de uma narrativa continuamente agradável. Memórias do Cárcere é uma obra de expressão, de observação, que sabe muito bem os momentos em que pode cruzar a linha entre relato e crítica e, acima de tudo, dá voz a brasileiros comuns, criminosos ou inocentes, que trazem ao leitor uma mistura de sensações, nem todas elas negativas ou repulsivas, muito pelo contrário.
Lutando contra um câncer de pulmão, Graciliano Ramos não conseguiu terminar Memórias do Cárcere. As informações oficiais dão conta de que ainda faltou um último capítulo (na edição em dois volumes da Editora Record, base desta resenha, há um posfácio de um dos filhos do autor que detalha estes últimos acontecimentos). Este aspecto parcialmente "inacabado" não danifica de nenhuma forma o que Memórias do Cárcere é: uma obra singular, de um poder descritivo e reflexivo inigualável que só contribui para a eternidade literária do seu idealizador.