Jess.Carmo 15/06/2021
Lacan pretendia colocar em questão o que estava implícito naquilo que Freud fazia
Logo no início do seminário, Lacan diz que assume a empreitada de colocar em questão algo que está implícito naquilo que Freud fazia. Me parece que ao assumir essa postura Lacan acaba por produzir algo que não estava em Freud, nem mesmo de forma implícita. Trata-se, portanto, de subverter a teoria freudiana, de profanar a obra do pai da psicanálise.
Não quero dizer aqui que Lacan renega a obra do vienense, mas que acaba por produzir algo que nada tem de freudiano. Bem, sabemos da preferência de Freud pela filosofia schopenhaueriana. Por sua vez, encontramos em Lacan, de cabo a rabo, referências ao adversário privilegiado de Schopenhauer, a saber, Hegel.
Além disso, Lacan reconhece a denegação de Freud acerca da afirmação de que sua teoria seria de domínio especulativo, sempre colocando o acento à disciplina dos fatos e à empiria. Entretanto, não é o que estaria explícito em Freud que interessa Lacan, mas o que supostamente está implícito. Dessa forma, Lacan localiza Freud dentro das ciências conjecturais, ou seja, como aquele que disseca não com a faca, mas com os conceitos.
Bem, mas voltemos para o início da questão. Para colocar em questão o que Freud fazia, precisamos primeiro entender o que ele fazia. Segundo Lacan, "o ideal da análise não é o domínio completo de si, a ausência de paixão. É tornar o sujeito capaz de sustentar o diálogo analítico, de não falar nem muito cedo, nem muito tarde. É a isso que visa uma análise didática. A introdução de uma ordem de determinações na existência humana, no domínio do sentido, se chama razão. A descoberta de Freud é a redescoberta, num terreno não cultivado, da razão" (p. 12).
Parece que, ao afirmar que Freud redescobre um terreno não cultivado, Lacan remonta à velha prática da parrhesía, a saber, a forma necessária ao discurso filosófico de dizer a verdade. Entretanto, esse dizer-verdadeiro tão caro aos filósofos não depende apenas do logos, mas também é necessário que exista uma léxis, ou seja, uma maneira de dizer as coisas. Era uma preocupação para os gregos porque era possível dizer o verdadeiro sem que isso tivesse efeitos significativos no discípulo; ou seja, sem que houvesse modificação entre a relação do sujeito com a verdade. Dessa forma, sem a léxis o objetivo do filósofo estaria fadado ao fracasso. É preciso dizer a verdade a partir de uma léxis para que o discípulo possa alcançar a verdade.
O leitor mais atento pode afirmar que se trata de uma grande digressão minha, mas considero que quando Lacan diz que "Freud estava engajado na pesquisa de uma verdade que lhe concernia totalmente, até sua pessoa, portanto também na sua presença diante do doente, na sua atividade, digamos, de terapeuta" (p. 33) - a referência é aos terapeutas gregos, que cuidavam do ser, como diz Hyppolite na página 253. A pesquisa de Freud, na leitura de Lacan, "não é marcada pelo mesmo estilo que as outras pesquisas científicas. O seu domínio é o da verdade do sujeito". Nos remontamos aqui a definição de ciência verdadeira dada pelo psicanalista francês no texto "Função e campo da fala e da linguagem", que estava em Teeteto, mas que se degradou com a "inversão positivista que, colocando as ciências do homem no coroamento do edifício das ciências experimentais, na verdade as subordinou a estas. Essa noção provém de uma visão errônea da história da ciência, baseada no prestígio de um desenvolvimento especializado dos experimentos" (Escritos, p. 285).
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Lacan também está preocupado com a falta de consenso entre os analistas acerca do que se trata uma análise. A única coisa que daria condição para a comunicação dos analistas era única e exclusivamente a linguagem freudiana. Para expor essa divergência, ele expõe a teoria dos analistas que pensam, a saber, o sr. Ballint, Sr. Fenichel Melanie Klein e Anna Freud; elencando como principais problemas em suas teorias a ideia de que em uma análise se trata de dois indivíduos, a análise das resistências e o fortalecimento do eu.
Para Lacan, na experiência analítica "não há uma two-bodies’ psychology sem que intervenha um terceiro elemento" (p.21), ou seja, trata-se de uma relação a três. Essa formulação é uma chave fundamental para a leitura do seminário, já que o simbólico, esse terceiro termo, é o "pacto que liga os sujeitos uns aos outros numa ação. A ação humana por excelência está fundada originalmente na existência do mundo do símbolo, a saber, nas leis e nos contratos" (p. 299). Sem esse terceiro termo, noções como desejo, sujeito, eu, ficam incompreensíveis. É nesse sentido que Lacan pode dizer que a singularidade "ultrapassa de muito os limites individuais" (p. 22). "Não há nunca uma simples duplicidade de termos. Não é somente que eu vejo o outro, eu o vejo me ver, o que implica o terceiro termo, a saber, que ele sabe que eu o vejo. O círculo está fechado. Há sempre três termos na estrutura, mesmo se esses três termos não estão explicitamente presentes" (p. 283-4)
Quanto a concepção do ego e do fortalecimento do eu, Lacan está exaustivamente afirmando que o acento dado a essa instância é a causa de quase todas as dificuldades do nosso campo.
A ênfase sobre a resistência do analisando também se torna um obstáculo na técnica analítica. Para Lacan, a ênfase na análise das resistências não passa de "um acosso do sujeito pelas intervenções do analista" (p. 43). Lacan entende que a ênfase na análise das resistências tornou o campo analítico policialesco. "Eles ficam sobretudo tentando sempre saber que postura o sujeito adotou, que achado pôde fazer, para se colocar numa posição tal que tudo que lhe dissermos será inoperante. [...] Há aí a ideia de uma má vontade fundamental do sujeito. Todos estes traços fazem com que eu acredite ser preciso, ao qualificar esse estilo analítico de inquisitorial" (p. 45). Apesar dessas pontuações, Lacan não rejeita totalmente a análise das resistências, mas diz que é difícil trabalhar com a noção sem a presença de uma violência implícita.
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