Ana Sá 06/05/2022
"Dormem muito, mas só sonham com eles mesmos"
"Para nós, a política é outra coisa. São as palavras de Omama [demiurgo Omama, primeiro xamã] e dos xapiri [termo yanomami para designar tanto os xamãs, os homens-espírito –xapiri thëpë–, quanto os espíritos auxiliares –xapiri pë] que ele nos deixou. São as palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que preferimos, pois são nossas mesmo. Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham consigo mesmos".
Os novos-velhos casos de genocídio em território Yanomami fizeram gritar as memórias que tenho deste livro, que, desde que li, se mantém firme no meu Top 3 de obras que me mudaram muito e para sempre. Realizei a leitura há bastante tempo, mas só agora venho arriscar uma resenha, a fim de, pura e simplesmente, fazer propaganda gratuita desta obra (sobretudo porque a tal lista da Folha mexeu com a curiosidade das pessoas). É uma leitura densa, que exige muito de nós, principalmente na sua primeira metade, mas que nos deixa absolutamente estupefatas.
Trata-se de um texto escrito a quatro mãos: seu autor-narrador é o líder indígena Yanomami Davi Kopenawa, já seu escritor é Bruce Albert, etnólogo francês, nascido no Marrocos, responsável por traduzir, da língua indígena para o francês, um pouco mais de uma década de conversas e entrevistas (ou de "sequências de monólogos") realizadas com Kopenawa. A publicação original, na França, ocorreu em 2010, e somente cinco anos depois, em 2015, a obra veio a ser bravamente traduzida para o português por Beatriz Perrone-Moisés, tendo como cereja do bolo o brilhante prefácio assinado por Eduardo Viveiros de Castro.
"A queda do céu" tem origem no desejo de Davi Kopenawa de "explicar essas coisas para os brancos". E não é difícil entendermos sua razão: num país historicamente marcado por um falar "sobre os indígenas", que por séculos foram objeto da narração dos não indígenas, a obra nos convida a um contato com os indígenas enquanto sujeitos de suas próprias histórias. E eu, mulher não indígena, jamais vou me esquecer da sensação de me perceber sendo narrada ali naquelas páginas. É quase impossível acompanhar Davi Kopenawa descrevendo "o povo da mercadoria” sem nos sentirmos patéticas. É revoltante ver o quanto os livros de História e a mídia não chegam nem perto de narrar à altura o desastre humano e ambiental decorrente da atividade mineradora. Ao nos descolonizar, este livro escancara o tamanho da nossa ignorância, além de nos colocar diante de vários dilemas éticos. Não me lembro onde vi/ouvi essa frase, mas uma das conclusões que tirei de "A queda do céu” foi justamente esta: como a colonização de pensamento nos emburreceu!
Ainda que a questão do genocídio indígena seja transversal, há no livro um belíssimo convite ao cotidiano e às tradições Yanomami em geral. Um contato ímpar com sua cosmovisão. A descrição dos rituais xamânicos, por exemplo, é de arrepiar! Pode ser cansativo para algumas leitoras, pois Kopenawa caminha sempre devagar, investindo nas minúcias, nos entregando os detalhes… É também demorada a familiarização com expressões e termos da(s) língua(s) Yanomami. Mas a quem tiver paciência, o fechamento de alguns capítulos pode ser equivalente a um voltar para casa. Falo da minha experiência: no encerramento de algumas passagens, eu tive a sensação de estar voltando, cansada mas ainda anestesiada, ao meu sofá, tamanha era a sensação de ter viajado para dentro da floresta. A escrita de Kopenawa é generosa no modo como pinta as paisagens e as sensações de tudo que acontece ali, mas sem propor uma romantização ou um endeusamento dos povos indígenas. Este é outro ponto alto: Kopenawa não foge a temas polêmicos ou delicados quando eles aparecem.
A segunda metade do livro torna-se mais dinâmica, sobretudo quando foca na consolidação do ativismo político de Kopenawa, a partir de 1980 mais ou menos. O teor dos relatos muda, pois os cenários e as pessoas são completamente diferentes, mas também ali há passagens muito marcantes. As situações envolvendo os compromissos de Kopenawa na América do Norte ou na Europa são interessantíssimas e continuam a propor olhares descoloniais na nossa forma de nos relacionar com as outras culturas. Um acontecimento, em específico, acho que na ocasião de uma visita que Kopenawa faz a um museu parisiense (não tenho o livro em mãos para confirmar qual era exatamente o museu), deveria ser leitura obrigatória nas escolas, inclusive. Sério, vocês vão se lembrar de mim quando chegarem a este capítulo, ele é f*%D demais!
Eu realmente concordo com Eduardo Viveiros de Castro quando ele diz que “A queda do céu” é um “acontecimento”, e não meramente um texto. Na média, a leitura não é fluida, mas no todo, ela é arrebatadora. Temos aqui um livro de História do Brasil que nos liberta, em alguma medida, das amarras da história única que o eurocentrismo nos impôs. O período que marca os relatos que dão forma à obra, que vão da iniciação xamânica de Kopenawa até o amadurecimento de seu papel de líder indígena (se não me falha a memória, isso abrange, mais ou menos, o período de 1960/70 ao início dos anos 2000), nos dá uma outra visão de Brasil ao mesmo tempo que nos recorda que o pior da História se repete. As notícias atuais sobre o povo Yanomami poderiam ter sido retiradas dos “monólogos" de décadas atrás que Kopenawa já havia registrado em seu livro justamente com o objetivo de “explicar essas coisas para os brancos”. E ele explicou. Fomos nós que não entendemos nada. Será que ainda há tempo para aprendermos a sonhar um pouco mais longe?