Cailes Sales 20/04/2017A Dama de Papel é um romance de época ambientado na Londres do século XIX, do mesmo modo que vários outros livros do gênero, contudo, essa história é bem diferente dos demais romances de época que li até o momento e foi, com certeza, uma leitura marcante.
Aqui vamos conhecer Molly, uma mulher que fugiu de um casamento arranjado e teve que se prostituir para sobreviver. Ela foi acolhida pela senhora que comandava o prostíbulo e logo depois acabou assumindo o comando da casa. Com o passar do tempo, Molly tornou-se conhecida entre os homens dos diversos círculos sociais, desde a classe proletária à nata da burguesia. Certo dia, ela recebe um novo cliente chamado Charles, o qual passa a visitá-la cada vez com mais frequência e, de forma inesperada, sentimentos surgem entre ambos.
O que explanei acima é apenas a premissa básica dessa história, que é muito mais do que um romance entre uma prostituta e um cavalheiro. Penso que o romance, por mais que seja o foco da narrativa, não é realmente o cerne de A Dama de Papel, na verdade a relação entre os protagonistas serve de base para que sejam abordadas diversas questões pertinentes a sociedade londrina do séc. XIX, principalmente a situação da mulher neste período.
“[...] Nunca fui simpática à ideia de ser uma moça nobre, cercada de servos, riquezas, limites alheios e frustrações! Nunca me afeiçoei a possibilidade de me esconder à sombra de ninguém, em especial de um homem, um marido. Sempre quis viver para mim mesma, à minha maneira”. (p.45)
O ponto-chave da obra é Molly, que é uma protagonista única. Temos aqui uma jovem que ao se ver privada de decidir sobre o seu próprio futuro, em uma época onde as mulheres eram obrigadas a obedecer aos pais e posteriormente ao marido, toma a decisão de vender o próprio corpo para não ter que se sujeitar a um casamento com alguém que considerava asqueroso, mas que devido a classe social e poder econômico, era visto como um ótimo partido. Temos aqui uma protagonista que enfrentou todos os seus medos para manter o poder sobre si mesma, e eu achei isso incrível!
“Sou pouco, tenho menos ainda. Mas me pertenço! ” (p.102)
Além de nos presentear com uma mocinha totalmente diferente, a autora em diversos momentos traz críticas ao modo como as mulheres deveriam se portar naquela época e também nos faz adentrar na rotina de outra personagem, que ao contrário da protagonista, vive dentro dos parâmetros regidos pela sociedade e, então, mergulhamos em duas diferentes situações, em duas distintas realidades que nos instigam ainda mais a analisar o papel da mulher há séculos atrás, bem como atualmente. São várias as passagens já no início do livro em que a autora descreve os deveres e a “boa conduta” que tinham de ser adotados pelas damas e “mulheres de família” da época, vou colocar apenas um quote para exemplificar, pois se fosse deixar registradas aqui as inúmeras frases impactantes da narrativa, a resenha ficaria gigante.
“Damas vitorianas eram a mola propulsora da engrenagem familiar, devotas ao lar, aos badulaques, à educação dos filhos, aos criados, aos maridos. Damas vitorianas eram educadas desde cedo para que detivessem o domínio dos próprios sentimentos e frustrações em nome do que realmente importava: a estabilidade familiar, ingrediente indispensável para que a riqueza brotasse permanentemente em seus lares”. (p.7)
Charles é um personagem que representa bem a posição masculina naquela época, ao homem também é cobrada uma postura específica, ele tem responsabilidades e deveres com a sociedade, necessita manter as aparências, é imprescindível que desempenhe seu papel no meio social. Não foi um protagonista pelo qual eu tenha me apaixonado, mas gostei de ele não ser romantizado, é um homem com defeitos e preconceitos, e que mesmo movido pela paixão, ver-se imbuído a seguir os ditames sociais.
O relacionamento entre Molly e Charles é intenso e profundo, entretanto, não é um romance regado a flores e versos, mas uma relação complicada de amor e paixão, que muito se distancia do romance perfeito e “água com açúcar”. A todo momento fiquei me questionando até que ponto a relação dos protagonistas era correta, se o “correto” era o “certo” na situação em que se encontravam, e me vi dividida entre querer ou não que eles ficassem juntos.
Diversos sentimentos me assolaram durante a leitura da obra e o principal deles foi a angústia, por vezes escoltada pela indignação. A Catarina Muniz retrata a Londres pobre e marginalizada que raramente encontramos em outros romances de época, ao mesmo tempo em que traz a hipocrisia presente na classe rica dessa bela cidade. E tudo isso é narrado por meio de uma escrita poética que nos envolve ainda mais.
Só tenho a dizer que adorei a leitura e a indico para aqueles que gostam ou não do gênero, pois é uma obra que destoa das demais e, por esse motivo, é algo diferente a ser apreciado. Finalizo esta resenha com mais um trecho impactante e cheio de significados, que me marcou e emocionou bastante:
“Tudo o que Molly queria era ser livre. Dona de si e independente. Tudo o que Molly queria era ter o domínio sobre as próprias escolhas e conclusões. ” (p.214)
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