Euflauzino 16/04/2018A construção de uma potência
Faço a constatação de que mesmo passado um tempo de minha leitura continuo em estado de choque com este livro e me pergunto: sob que alicerces se assenta um país? Irmandade, morte, racismo, favorecimento, xenofobia.
Na atualidade, Dennis Lehane é a própria representação do gênero policial. Quem discorda leia algo dele ou assista a um filme baseado em sua obra e chegará facilmente a essa conclusão.
Como leitor, acredito que é na construção dos diálogos que conhecemos o valor de um escritor. Em Naquele dia (Companhia das Letras, 696 páginas) os diálogos são rascantes, irônicos, reais, dando agilidade ao primoroso texto. De qualquer forma eu já conhecia esta qualidade de Lehane, o que eu não sabia é de seus dotes de historiador, o poder de retratar fidedignamente uma época, no caso os anos 20. Isso é pra poucos.
O fim da Primeira Grande Guerra é um marco na construção dos Estados Unidos. Enquanto as grandes nações da Europa encontravam-se enfraquecidas coube aos EUA fornecerem a elas empréstimos e materiais industrializados elevando seu PIB e sinalizando o que viria a ser o pensamento reinante da maior potência mundial.
Mas nem só de rosas vivia o cidadão deste país naquela época. Vários soldados voltavam da guerra e não encontravam emprego, o racismo estava no auge e a luta dos negros pelos direitos civis ganhava contornos ainda embrionários, imperava a Lei Seca e Hoover iniciava a caça às bruxas, imigrantes anarquistas e comunistas subvertiam a ordem, sindicatos conclamavam greves e para coroar o que já não estava muito bom a gripe espanhola chegava e dilacerava com seus dentes ávidos quem encontrasse pela frente.
É neste cenário explosivo que Lehane edifica seu romance – uma Boston do início do século XX, com irlandeses estabelecidos, italianos marginalizados e negros humildes e revoltados – interpondo realidade e ficção, apoiado em vasta pesquisa histórica.
“Seis anos atrás, fizera-se a primeira greve na Grande Liga de Beisebol. O Detroit Tigers recusou-se a jogar até que Ban Johnson revogasse a suspensão de Ty Cobb, por ter batido num torcedor que estava na arquibancada. O torcedor era um inválido, tinha cotos em lugar de braços, não tinha mãos para se defender, mas Cobb o agrediu, mesmo depois de ele estar caído no chão, metendo-lhe as chuteiras no rosto e nas costelas. Ainda assim os companheiros de Cobb tomaram partido dele e fizeram greve em apoio a um sujeito de quem ninguém gostava. Diabo, todo mundo odiava Cobb, mas a questão não era essa. A questão era que o torcedor chamara Cobb de “meio crioulo”, e não havia nada pior para chamar um branco, salvo talvez “chegado num crioulo” ou simplesmente “crioulo”.”
O policial Danny Coughlin, descendente de irlandeses, é filho de um capitão da polícia. Seguindo os passos do pai sonha galgar rapidamente os degraus da instituição. É apanhado, triturado e arremessado no epicentro da luta contra organizações anarquistas. Forçado a infiltrar-se em suas linhas para delatar “os cabeças” do movimento acaba por alterar sua visão a respeito do proletariado. Isso e seu amor pela criada que trabalha em sua casa acabará por levá-lo a romper com seus familiares e suas convicções.
“... Danny escapara do bombardeio da Salutation Street e perdera a única mulher que amara na vida, Nora O’Shea, uma irlandesa que trabalhava como criada para seus pais. O caso parecia fadado ao fracasso desde o princípio, e fora Danny quem tomara a iniciativa de romper. Mas, desde que ela saiu de sua vida, ele não conseguia achar uma boa razão para continuar a viver. Agora, por pouco não matara Johnny Green no ringue do Mechanics Hall. Tudo isso no curto espaço de vinte e um meses. Tempo suficiente para levar um homem a se perguntar se Deus lhe guardava algum rancor.”
Seu senso de justiça e sua força de caráter acabarão por alçá-lo à condição de representante de uma organização de policiais que lutam por uma vida mais digna, opondo-se às forças de uma lei que não os ampara.
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