Ricardo Rocha 19/03/2011
A vida viva que sufoca
O prazer provindo do desespero parece ser o único possível e esse homem, que se acha culpado por tudo que lhe acontece, porque é mais inteligente que os demais e isso de nada adianta uma vez que não possui generosidade com que possa perdoar, ou esquecer, porque acima de cima não é alguém provido de determinação, da vontade que cristalize suas eventuais virtudes. “But upon my word I sometimes have had moments when if I had happened to be slapped in the face I should, perhaps, have been positively glad of it. I say, in earnest, that I should probably have been able to discover even in that a peculiar sort of enjoyment--the enjoyment, of course, of despair; but in despair there are the most intense enjoyments, especially when one is very acutely conscious of the hopelessness of one's position”. Dostoievski está aqui, num sentido filosófico, muito além de qualquer outra de suas obras e possivelmente além mesmo de Kafka, Hesse, Sartre, Camus e todos esse com quem o homem do subterrâneo possui parentesco. Não tem misericórdia, nem dos outros de si mesmo, do alto de sua mente perturbada. Obscuridade, repetições, advérbios em excesso, tudo tem a intenção aparente – conseguida – de tornar o texto intenso e pesado. A lamentar talvez – ou não – que, como em Crime e Castigo por exemplo, não exista aqui remissão ou sequer essa possibilidade.
“Não quero mentir. Dei a minha palavra” – É assim que Dostoievski lembra a si mesmo. Embora escrevesse uma novela, ele manteria os princípios da primeira parte, a das confissões do Homem do Subsolo. Irá portanto falar de devassidão pelas noites sórdidas. Tem ecos de suicídio na alma, bêbado de nada, da própria sordidez. Nessas andanças evoca por duas vezes personagens de Gogol – o que me pareceu sintomático. Uma, o bondoso proprietário de terras da parte inacabada de Almas Mortas, cujo autor iria ele mesmo destruir e que, ao contrário da primeira, que versa sobre a vulgaridade da ambição mais rasteira, deveria falar sobre o bem na Rússia, sobre as pessoas boas que engrandeciam o país. O outro, o amante da mulher cujo marido descobre e termina surrado, mas em vez de reagir, ou não, sugerir quem sabe um duelo, resolve delatar a agressão à polícia. Traidores e covardes convivendo com o sublime que a um tempo provoca sarcasmo e uma ponta de inveja. Dostoievski não quer mentir e escreverá nessa segunda parte uma novela tão perturbadora quanto a filosofia da primeira.
O diálogo de Liza: Passagem única mesmo numa literatura de “passagens” como a de Dostoievski. A sutileza é refinada e até certo ponto a ironia contém o sarcasmo fácil. Porém a crueldade chegará. E, em Dostoievski, soa devastadora, porque é cruel e porque provém dele. É perturbador. Perturbador. Assim esse subterrâneo. E, para quem ama Clarice, ainda mais quando ecoa a Paixão de G.H: “A vida ‘viva’ me sufocava tanto que chegava a ser doloroso respirar”