Israel145 20/04/2016A trilogia Snopes é um projeto ambicioso na vasta e arrojada literatura de William Faulkner. Composta por diversos fragmentos, contos, ensaios, rejeitos e causos, a trajetória do clã Snopes começa a ser contada no primeiro volume, O povoado, que narra a chegada do clã ao fictício condado de Yoknapatawpha (pronuncia-se ióquinopotalfa!), mais especificamente na região de Frenchmens Bend, uma antiga fazenda que teve seu auge na guerra civil americana.
Expert em representar a sociedade sulista dos Estados Unidos, Faulkner desliza sua pena à vontade contando os causos dos caipiras que vivem no condado. O livro tem um ritmo lento, começando com histórias caipiras sobre vacas e mulas. O desenvolvimento truncado, sem pressa e no ritmo da vida na fazenda, passa aos leitores aquela sensação de calmaria em que a qualquer momento algo vai acontecer.
Mas não acontece. O ritmo permanece o mesmo enquanto o leitor observa passivo e atônito o clã Snopes se incorporar na região liderado pelo sombrio Flem Snopes. Que transforma os caipiras em meros fantoches. Frio, calculista e malandro, Flem Snopes é movido pela ganância. Não uma ganância explícita, mas uma ganância especulativa, oportunista e sorrateira. Faulkner o blindou com a aura da vitória. No livro, Flem Snopes não perde uma. Manipula caipiras, latifundiários, juízes e até o sujeito mais esperto do condado.
Esse primeiro romance confere ao leitor ferramentas pra mergulhar no universo Faulkniano. Considerado um autor difícil, sua leitura requer uma mente aguçada para entender e acompanhar o ritmo da narrativa e da ação, onde os personagens são tão críveis e palpáveis que fornecem à sua obra algo de cinematográfico. Depois que o leitor acostuma, o livro flui sem maiores problemas. Outro ponto que não pode passar em branco é a espécie de fascinação que o autor tem por retardados mentais. Um dos contos do livro traz o personagem Ike Snopes, retardado que tem fetiche por vacas, chegando ao auge de sequestrar uma e partir sem rumo pelos arredores do condado. Faulkner retoma um pouco a fórmula de O som e a fúria mostrando a mesma forma de narrativa que usou no primeiro capítulo com o personagem Benjamin Compson.
E por fim, a melhor parte do livro é quando surge Eula Varner, a garotinha linda e deliciosa que arrebenta o coração dos marmanjos. Essa Lolita caipira é a personagem mais bem caracterizada no romance e o leitor se entrega às manipulações literárias do autor até o desfecho da paixão louca nutrida pelo professor do condado, que Faulkner transforma no clássico caso de amor impossível, mas com uma roupagem verdadeiramente excitante que confere a esse capítulo do livro uma estética rara na literatura. Ele escreve trechos carregados de uma deliciosa libertinagem sem vulgaridades, asco ou grosserias. O resultado desse amor platônico só pode acabar da maneira sulista. Faulkner mostra com destreza literária ímpar o desfecho.
Enfim, boa leitura, recomendável para quem já tenha lido algo do autor e que pretende se meter um pouco mais na vida dos clãs caipiras de Yoknapatawpha.