Ângela Bittencourt Cardoso 01/10/2021
Ela foi ousada em tudo
Luísa amou duas vezes: Eugênio e Pedro. O segundo foi, sobretudo, um amor sublime que procurou desprezar o desejo físico. Desejo, nestes tem-
pos, lacrado nas profundezas e considerado desonroso. O código român-
tico conciliava pudor e tentação. Ela tentou segui-lo à risca. Mas é bem prováve l que a correspondênc ia tantas vezes entregue ao fogo revelasse o
outro lado subterrâneo. Aquele onde arderam todos os prazeres.
Ela tornou a vida num palco para suas "cambalhotas". Um espaço onde desenvolveu uma maneira, toda sua, de criar e de amar. Se os seus foram
tempos em que a essência da individualidade feminina era a renúncia, Luísa ignorou essa regra a maior parte do tempo. Uma educação privi- legiada e bicultural, um pai inspirador, múltiplas viagens, altos e baixos
financeiros, ideais liberais e uma fidelidade aos princípios nos quais cres- ceu fizeram dela uma figura singular. Sua luta pelo fim da escravidão, herdada de D. Domingos, se consolidou na participação que teve em "sociedades para a emancipação" dos cativos, organizadas por abolicio- nistas. Ela as freqüentou ao voltar para o casamento de Dominique e,
nessa mesma época, libertou os últimos e poucos escravos que ainda tinha nos engenhos.
Se ela tocou a solidão com os dedos, não foi para sofrer,
mas para fazer-se mais criativa. Sua devoção aos amigos, centenas deles presentes em sua correspondência e diários, revela que mais do que um
sentimento, a amizade era uma prática social, alimentada por cartas, con-
vites, salões e favores. Luísa nunca deixou de fazer indicações para car- gos fazendo jus ao ditado: "Aos amigos, tudo. Aos inimigos, a lei." Para
Luísa, ser amiga não era só ter sentimentos sutis por alguém. Significava partilhar lugares de ajuda mútua e solidariedade.
Luísa viveu numa época de amor romântico. Só se falava de sen- timento quando havia falta, obstáculo, distância e sofrimento. Palavras eram substituídas por um toque, rubores, silêncio ou um olhar. Tudo se
resumia à doçura de um perfume no lenço, em mãos que se enlaçavam, na alegria de um encontro, como o dela com D. Pedro no dia de sua apre- sentação. Tudo era evocação na distância.
Por mais de trinta anos, Luísa conduziu
sua relação com ele como quis e acreditou que deveria fazê-lo. A sedução que exerceu sobre o monarca se confundiu com um indescritível apetite
pela vida e com o prazer que resultava da partilha generosa de um espírito livre. Sobre ele exerceu um fascínio lúcido, inteligente, longe de qualquer
avareza ou inibição. Sua fidelidade ao imperador se forjou de maneira
a suportar a morte; não a real, mas a feita pelas feridas do tempo que passa. Foram almas gêmeas e unidas até o fim, cujos corações não en-
velheceram. Souberam modular a distância que os separava por meio de reencontros, conversas e carinhos numa aliança contra a falta que sentiam
um do outro. Segundo os biógrafos do imperador, junto com os livros e o Brasil, Luísa de Barral foi a sua grande paixão.
Luísa ousou no amor e na vida. Viveu rebeliões e quedas de monar-
quias, surtos de doenças e levantes de escravos. Tudo enfrentou como se fosse parte do jogo. Boa filha e boa mãe, na velhice continuava jovem. Sua sabedoria? Saber transmitir e gozar os pequenos acontecimentos da existênc ia. Invejável camaleoa, respeitada até por seus detratores, a quem soube, aliás, desprezar "olimpicamente".