Ive Brunelli 08/07/2012
Profundidade e leveza
Há leitores que preferem os contos aos romances de Clarice Lispector por considerarem estes um tanto introspectivos, herméticos, difíceis de entender. Por isso preferem Laços de Família ou A Via Crucis do Corpo e desistem de narrativas mais densas e extensas como O Lustre, A Cidade Sitiada ou A Maçã no Escuro, por exemplo.
De fato, os contos reunidos em A Legião Estrangeira são, em princípio, mais “fáceis”: são histórias com início, meio e fim. As personagens são bem definidas, bem descritas, os cenários são prontamente identificáveis, há ações que se desenvolvem de maneira clara – tanto que este livro é utilizado em aulas de língua e literatura no sistema educacional brasileiro em seus níveis fundamental e médio. Em outras palavras, seria uma Clarice mais fácil de entender.
Entretanto, a introspecção e o hermético também estão aqui. A sutileza e o sublime de Clarice permeiam, em gotas, essas narrativas aparentemente “fáceis”. E isso constitui a beleza do livro. O leitor de qualquer idade irá certamente se surpreender suspirando diante de certas cenas impressionantemente bem conduzidas.
Entre elas, considero importante destacar:
1) A relação aluno-professor em “Os Desastres de Sofia”, quando ela confessa: “...a prece profunda não é aquela que pede, a prece mais profunda é a que não pede mais”.
2) A constatação de que “pão é amor entre estranhos”, em “A Repartição dos Pães”
3) A impossibilidade do entendimento entre dois apaixonados em “A Mensagem”.
4) O que acontece quando seu bicho de estimação é um macaco em “Macacos”: um conto de pouco mais de duas páginas que constitui, sozinho, e sem exageros, um tratado completo sobre o que é o amor.
5) O conto “Tentação”: um ágil e rápido relato trata do encontro entre uma menina ruiva e um cãozinho basset que se fitam e se entendem. Encontro e entendimento em precisas duas páginas. Quase sufocante de tão bonito.
6) Em “Viagem a Petrópolis”, Clarice constrói uma personagem muito rica: uma velhinha sequinha, doce e obstinada, que emociona o leitor. Final surpreendente. Pérola em forma de conto.
7) Em “A Solução”, a autora trata de amor, ódio e vingança num cenário absolutamente simples, aparentemente previsível, mas com final também surpreendente. Apenas duas páginas e meia capazes de mexer com desejos e sentimentos secretos de qualquer um de nós.
8) O estarrecedor conto “Uma Amizade Sincera”: quem tem amigos verdadeiros, sabe que “amizade é matéria de salvação”. “Queríamos tanto salvar o outro”, diz o narrador. A evolução da narrativa aponta para algo ainda mais profundo. A amizade, com o tempo, pode se transformar em desligamento, talvez em abandono. Mas não precisa ser matéria de mágoa, talvez os pares já tenham se dado tudo o que podiam se dar...
E, finalmente, destaco o conto “O Ovo e a Galinha”. Este, sim, pura exceção ao “fácil”. Hermético total, introspectivo geral, poesia em prosa, narrativa alucinatória, quase uma maluquice. E, de tão denso, absolutamente deslumbrante pelas descrições mágicas do que é ser ovo e do que é ser galinha. Dá pano pra manga. Já li e reli inúmeras vezes, sem me cansar. Já me perdi dezenas de vezes entre ovos e galinhas. Sem me cansar. Uma verdadeira obra de arte, considerada pela própria Clarice como um de seus textos mais densos. Admirável. Partes desse conto são recitados por Maria Bethânia em um vídeo extra encontrado no DVD “De Corpo Inteiro – Entrevistas” (um filme de Nicole Algranti).
Alguns dos contos encontrados em A Legião Estrangeira, incluindo O Ovo e A Galinha, foram republicados em Felicidade Clandestina, de 1971.
PS: A edição da Editora Ática de 1987 contém uma excelente introdução por Affonso Romano de Sant’Anna intitulada “Clarice: a Epifania da Escrita”.