Pandora 23/03/2023
Decidi, depois de ler "Felicidade clandestina", colecionar Clarice Lispector. Ela é uma autora sensacional, simples, direta, sensível e emocionante. Eu fico absurdada com a forma totalmente despretensiosa através da qual Clarice conta suas histórias, o aterrador, corriqueiro, profundo e superficial aparece na narrativa dela de uma forma tão natural quanto o milagre de nascer em um mundo atroz como esse no qual vivemos. Então, poucos dias depois de terminar "Casas Vazias", ainda um pouco sem chão, peguei "A Via Crucis do Corpo" para dar uma olhada e terminei lendo de uma vez só, em um gole.
Em "A Via Crucis do Corpo" encontramos uma coletânea de contos feitos pela Clarice por encomenda de seu editor. A ideia era que ela escrevesse histórias que realmente aconteceram e entre o dia 12 e 13 de Maio ela escreve. Lendo esse livro tive a impressão de ter passado um dia inteiro com a Clarice, tomando café e ouvindo ela contar essas histórias. Ela sozinha em casa, eu sozinha em casa, ela falando, eu ouvindo, como se o apartamento dela se fundisse ao meu e nós realmente estivéssemos no mesmo espaço sem separação de tempo.
Cada história parece uma história secreta, coisas sobre as quais as pessoas que viveram talvez não gostassem de comunicar ao mundo, sensações da intimidade e do desamparo da própria autora. Os contos são diferentes histórias, mas se conectam um ao outro enquanto são escritos todos, um após o outro nesse fim de semana, entre o dia das mães de 12 de Maio e o dia 13 de Maio, dia da Abolição da Escravidão. Contos lúdicos, profundos, com a pretensão de serem verdadeiros, e, mesmo quando são absurdamente fantásticos, acredito em tudo que Clarice me contou nesse dia no qual nossas solidões se encontraram através da palavra escrita.
"Quando a gente começa a se perguntar: para quê? então as coisas não vão bem. E eu estou me perguntando para quê. Mas bem sei que é apenas "por enquanto". São vinte para as sete. E para que são vinte para as sete?
Nesse intervalo dei um telefonema, e para o meu gáudio, já são dez para as sete. Nunca na vida eu disse essa coisa de "para o meu gáudio". É muito esquisito. De vez em quando eu fico meio machadiana. Por falar em Machado de Assis, estou com saudade dele. Parece mentira mas não tenho nenhum livro dele em minha estante. José de Alencar, eu nem me lembro se li alguma vez.
Estou com saudade. Saudades dos meus filhos, sim, carne de minha carne. Carne fraca e eu não li todos os livros. La chair est triste.
Mas a gente fuma e melhora logo. São cinco para as sete. Se me descuido, morro. É muito fácil. É uma questão do relógio parar. Faltam três minutos para as sete. Ligo ou não ligo a televisão? Mas é que é tão chato ver televisão sozinha.
Mas finalmente resolvi e vou ligar a televisão. A gente morre às vezes." (pág. 45)