spoiler visualizarJeff 06/01/2014
Lísias e o pantanoso terreno do vale-tudo empresarial
As pessoas são autômatos arrivistas e subservientes ou elas agem como tal em função de carreira, insegurança sexual, sentimental, existencial? Sobreviver na selva da contemporaneidade corporativista exige expulsar de nosso comportamento tudo aquilo que possa ser identificado com compaixão e interesse genuíno pelos outros? Um profissional bem sucedido da área financeira é um fantoche, um simulacro de gente ou há nele algo que de alguma maneira está presente no núcleo profundo da personalidade de todos nós? Manda quem pode e obedece quem é (mais) esperto?
Essas são algumas perguntas que podem ser feitas a partir da leitura de “O livro dos mandarins”, de Ricardo Lísias, que já publicou, entre outros, os romances “Cobertor de estrelas” (Rocco), e “Duas praças” (Globo), terceiro colocado no Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira de 2006, além de “Anna O. e outras novelas” (Globo), finalista do Prêmio Jabuti de 2008.
Um executivo de um grande banco, perseguido por uma dor nas costas crônica e interessado em abrir caminho a qualquer custo se mete em poucas e boas. Ou melhor, participa de muitas e esdrúxulas situações e quanto mais farsescas elas são, misturando países, costumes, latitudes e longitudes, valores e intenções, mais o livro desperta interesse. As primeiras 70 páginas são difíceis de serem vencidas, porque a repetição para marcar quem é este anti-herói e estabelecer o tom geral da obra por vezes pode entediar e perturbar. É complicado descobrir quem é quem e quando o autor está falando sério ou está ironizando. Mas na medida em que o leitor se acostuma com alguns dos recursos básicos empregados, não há como não rir e refletir.
O herói muda de nome como quem muda de roupa. Inicialmente Paulo, vai ganhando asteriscos que lhe trocam o prenome para Paul*, Pau** e assim por diante e cada asterisco corresponde a uma lisonja que faz aos chefes e a uma maledicência que provoca entre seus chefiados. E a narrativa em que boa parte dos homens se chama Paulo, as mulheres Paula, os sudaneses Omar Hassan (sejam eles motoristas ou chefes de governo), as sudanesas Salma, os “chineses” Lin San San, as “chinesas” Liu Xin ou Liu Xen acaba envolvendo e cortando como faca, na medida em que mergulha nos descalabros presentes numa grande corporação (empresa ou governo), apropriando-se da linguagem chapada e chapa branca empregada por essas instituições.
Os seres humanos inventaram os sons articulados e os diferentes alfabetos para tentar entender-se tanto com relação a negócios quanto a negociações sexuais e amorosas. Mas no cerne da própria linguagem está a possibilidade do desentendimento e da confusão. Aí surge o pantanoso terreno do vale tudo, do golpe, do cada um por si e Deus contra. As brincadeiras com as diferentes línguas e as formas de grafá-las revelam um autor erudito e que não parece pretender jactar-se de seus conhecimentos, mas sim colocá-los a serviço do humor e da ironia.
Um romance que tem como protagonista um bancário é bastante inusitado na literatura brasileira. E mais ainda se pensarmos que “O livro dos mandarins” é quase um roman noir contemporâneo, em que todo mundo quer se dar bem, não importam as consequências.
No mundo globalizado, o homem lobo do homem tornou-se talvez a medida do humano, parece nos dizer o autor, mas nos personagens secundários (como o instrutor de ginástica sudanês exilado ou o poeta brasileiro ghostwriter) aflora uma melancolia que não combina com a ideologia do vencer a qualquer custo. E que cria nuances para a questão da despersonalização, que é, aliás, um dos temas centrais deste romance. Que trata também de tráfico de influência, demissões justificadas por objetivos inconfessáveis, proxenetismo, a operação de extirpação do clitóris feminino para escravizar as mulheres e dar mais prazer aos homens, etc.
O sexo movimenta os negócios ou o mundo do business é, em si, um grande bordel? As conclusões ficam por conta do leitor. Ao resenhista caberia ainda, entre outras coisas, chamar a atenção para as delícias da junção da realidade provinciana do interior de São Paulo (com destaque para os “ouriçados” delegados de polícia), com propósitos e aspectos ideológicos expressos em cursos de MBAs, relatórios e tentativas de adequações aos diferentes papéis profissionais no mundo corporativo. O riso é o limite quando a intenção é fazer refletir sobre realidades muito sérias.
site: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2010/01/11/resenha-de-livro-dos-mandarins-por-elias-fajardo-256608.asp