jota 15/04/2021BOM – extremamente subjetivo livro tem muitos palavrões cabeludos, trechos que beiram a pornografia e um Santos Dumont mais cubanizado do que brasileiroLido entre 21/03 e 14/04/2021. Avaliação da leitura: 3,8/5,0
Trópico de Capricórnio (1938) é o terceiro volume da chamada trilogia francesa de Henry Miller (1891-1980), que compreende também Trópico de Câncer (1934) e Primavera Negra (1936). O livro é uma mistura de ficção com autobiografia em que me pareceu predominar o primeiro gênero, dados os imensos voos de imaginação do autor e a intensa subjetividade que percorre todo o volume. Confesso que me incomodou um tanto a quantidade de palavrões cabeludos usados por Miller bem como certo conteúdo sexual que beira a pornografia — ou é pornografia mesmo, porém dentro de um texto que na totalidade não pode ser classificado de pornográfico, absolutamente. Além disso, muita coisa que há alguns anos consideramos errado — machismo e vários tipos de preconceito envolvendo judeus, negros, homossexuais etc. — parecia bastante normal então. Não vou me estender sobre isso porque quem leu Miller ou já ouviu falar dele sabe da polêmica que suas obras sempre suscitaram. É verdade que apreciei Trópico de Câncer, do qual pouco me lembro pois o li na adolescência, mas este também vale uma leitura, claro.
Bem, isto não é exatamente uma resenha: vou me ater a alguns trechos do livro que me chamaram a atenção, em meio a muitos. E como estou com certa preguiça de resumi-los faço apenas uma transcrição direta. Miller se vale de suas memórias da Nova York dos anos 1920 misturadas a sua irreverência criativa e o resultado pode ser muito engraçado. Veja isso: “Um terrível senso de desolação pairou sobre mim durante anos. Se acreditasse nos astros, teria de acreditar que vivia inteiramente sob o domínio de Saturno. Tudo que me acontecia, acontecia tarde demais para ter alguma importância. Foi assim até com o meu nascimento. Programado para o Natal, nasci meia hora atrasado. Sempre me pareceu que eu devia ser o tipo de indivíduo que a gente está destinado a ser em virtude de haver nascido no 25 de dezembro. O almirante Dewey nasceu nesse dia, e também Jesus Cristo… talvez também Krishnamurti, pelo que sei. Seja como for, esse é o tipo de cara que eu tinha de ser. Mas devido ao fato de minha mãe ter o útero apertado, de me manter em seu poder como um polvo, saí sob outra configuração — uma má configuração, em outras palavras.” Pobre da mãe dele...
A imaginação de Miller não tinha limites mesmo quando tratava de coisas que realmente aconteceram com ele ou gente de sua família, conhecidos, colegas de trabalho etc. ou de lugares onde esteve ou viveu. Como a Nova York dos anos 1920, assim descrita a certa altura: “À noite, as ruas de Nova York refletem a crucificação e morte de Cristo. Quando a neve cobre o chão e faz-se o máximo silêncio, sai dos mais hediondos prédios de Nova York uma música de tão amargo desespero e falência que faz a carne murchar. Nenhuma pedra foi posta sobre outra com amor ou reverência; nenhuma rua foi estendida para a dança ou a alegria. Foi-se acrescentando uma coisa à outra numa louca corrida para encher a pança, e as ruas cheiram a barrigas vazias, barrigas cheias e meio cheias. As ruas cheiram a uma fome que nada tem a ver com amor; cheiram a barriga insaciável e a criações da barriga vazia, que são nulas e ocas. Nesse nulo e oco, nessa brancura zero, aprendi a desfrutar um sanduíche, ou um botão de colarinho. Podia estudar uma cornija ou uma cúpula com a maior curiosidade, fingindo ao mesmo tempo escutar uma história de desgraça humana. Lembro-me das datas em alguns prédios e dos arquitetos que os projetaram. Lembro-me da temperatura e velocidade do vento, parado numa certa esquina; a história que os acompanhava se foi. Lembro que mesmo então eu me lembrava de outra coisa, e posso dizer o que era, mas de que adianta?” E por aí vai...
Outro trecho que separei trata de sobremesa, coisa rara entre os pobres de seu tempo, e, curiosamente, de um Santos Dumont, que me pareceu muito mais com características cubanas do que brasileiras. Vamos à sobremesa primeiro. Tratando de sua infância, Miller menciona um menino rico que conheceu, filho único de um político da vizinhança. O pequeno Carl Ragner era “um daqueles meninos que não podiam se associar com outros meninos. Raramente o víamos, para falar a verdade. Em geral, era nos domingos que o víamos de relance andando com o pai. Não fosse o pai uma figura poderosa no bairro, Carl teria sido apedrejado até a morte. Seus trajes de domingo eram inacreditáveis. Não apenas usava calças compridas e sapatos de verniz, como exibia uma cartola e uma bengala. Um menino que se deixava vestir dessa forma aos seis anos tinha de ser um bobalhão — era a opinião geral. Alguns diziam que era meio adoentado, como se isso fosse desculpa para tão excêntrico traje. O estranho é que não o ouvi falar uma vez sequer. Era tão elegante, tão refinado, que talvez julgasse falta de educação falar em público. De qualquer modo, eu ficava à espera dele nas manhãs de domingo apenas para vê-lo passar com seu velho. Observava-o com a mesma curiosidade ávida com que olhava os bombeiros limpando as máquinas na corporação. Às vezes, a caminho de casa, ele levava uma caixinha de sorvete, a menor que havia, na certa só o bastante para si, para a sobremesa. Aliás, esta era outra palavra que de alguma forma se tornara familiar para nós, e que usávamos pejorativamene quando se referia a pessoas como o pequeno Carl Ragner e sua família. Passávamos horas imaginando o que aquela gente comia de sobremesa, e nosso prazer consistia sobretudo em repetir a palavra recém-descoberta, sobremesa, na certa contrabandeada para fora da família Ragner.” Acho que o menino Miller concordaria com quem disse certa vez que sobremesa de pobre é laranja ou banana e nem sempre tem...
Depois de comentar sobre as esquisitices de Carl, mas ainda no mesmo parágrafo, Miller fala daquele que nós brasileiros patrioticamente chamamos de Pai da Aviação: “Também deve ter sido por volta dessa época que Santos Dumont ganhou fama. Para nós, havia alguma coisa de grotesco no nome Santos Dumont. Não nos interessavam muito os seus feitos — só o nome. Para a maioria de nós, cheirava a açúcar, a fazendas cubanas, à estranha bandeira cubana que tinha uma estrela numa quina e era sempre muito valorizada pelos que guardavam os pequenos cartões distribuídos com os cigarros Sweet Caporal, e nos quais se representavam as bandeiras dos diferentes países, as principais soubrettes do palco [jovens criadas ou camareiras em peças cômicas] ou pugilistas famosos. Santos Dumont, pois, era algo deliciosamente estrangeiro, em oposição às pessoas e aos objetos estrangeiros normais, como a lavanderia chinesa ou a altiva família francesa de Claude Lorraine. Santos Dumont era uma palavra mágica que sugeria um belo e cheio bigode, um sombrero, esporas, algo etéreo, delicado, gracioso, quixotesco. Às vezes trazia o aroma de grãos de café e esteiras de palha, ou, por ser tão completamente exótico e quixotesco, implicava uma digressão sobre a vida dos hotentotes.” Achei curioso Miller mencionar Dumont, uma vez que nos EUA, seu país, se credita a invenção do avião aos irmãos Wright, em 1903. Se bem que para ele interessassem mais o nome e a figura exótica do inventor brasileiro do que seus feitos, como afirma.