Nelson 01/10/2023
Somos parasitas da criação de Chuck Palahniuk
A continuação me lembrou, de certa forma, o que experienciei ao ler o segundo volume de A Torre Negra (Stephen King). Os personagens estão presentes, porém, algo essencial mudou após tanto tempo entre uma história e outra. No caso de Clube da Luta, há ainda a questão da mudança de mídia. Confesso que a escolha do formato chamou mais a minha atenção do que a existência de uma continuação propriamente dita. Mas vamos à resenha:
Lá se foram 20 anos desde que Chuck Palahniuk publicou o livro que lançou luz sobre sua escrita. Tudo mudou nesse tempo, afinal, somos frutos da impermanência. Como Clube da Luta se tornou um best-seller, era de se esperar uma introdução que contasse sua origem. Apesar de Gerald Howard (o editor) começar nos contando detalhes triviais, como o tecido e a cor da roupa que Chuck Palahniuk usava quando se conheceram (e isso não ter a menor importância), ainda assim, aprendemos com ele um pequeno pedaço do funcionamento editorial do mercado americano e a inesperada reviravolta que transformou Clube da Luta em um verdadeiro culto, embora Howard não nos forneça muitos detalhes. Confesso que preferiria uma introdução com as palavras do próprio Chuck, suas emoções e reflexões sobre a obra, e a razão por trás da sequência vinte anos depois.
A capa, assim como as primeiras páginas até o fim da introdução, possui um toque visual rústico, explorando cores cinzas que lembram uma folha suja de um mural rasgado, além das marcas de sangue no logotipo. A textura áspera, presente abaixo do logo e nos curativos da ilustração, também contribui para criar uma atmosfera com o simples toque. É com essa sensação que somos guiados logo de início em Clube da Luta 2.
Nove anos após os eventos do final do livro, Clube da Luta 2 se inicia explorando o casamento de Marla Singer e o narrador, Sebastian ("Agora ele se chama Sebastian"). Eles precisam lidar com os desafios da vida conjugal em meio a rotina sem sentido que vivenciam. Enquanto Sebastian luta para manter a sanidade, afinal sua dissociação de identidade não é mais um segredo para ninguém, Marla sente a falta da paixão que viveu com Tyler Durden. Nem mesmo Júnior, o filho do casal, parece ser capaz de uni-los. Na verdade, o garoto parece mais um acessório para a história. Para piorar, devido aos eventos do primeiro Clube da Luta, a sociedade está agora envolta em conflitos de escala global. Mas esqueça a anarquia libertadora do livro original; agora a guerra é pela dominação.
"Hoje em dia ele se chama de Sebastian". Antes de continuar, é importante fazer um comentário sobre isso. Apesar de receber esse nome, algo fica no ar, como uma incerteza sobre ele se chamar Sebastian, afinal ele mesmo não declara o próprio nome. Aliás, na maior parte do tempo, Sebastian é chamado de Tyler Durden. Ainda que Marla e outros personagens o chamem de "Sebastian", não é acrescentado um sobrenome. Vemos nas ilustrações adesivos com vários nomes usados pelo protagonista e "Sebastian" é apenas mais um deles, o atual escolhido para representá-lo. Além disso, nos momentos mais emocionantes da trama, quando Marla precisa diferenciar a quem se refere, ela o chama por "marido", o nome "Sebastian" parece ficar reservado para os momentos de crise conjugal. Se o narrador prefere dizer "Hoje em dia ele se chama de" ao invés de "seu nome é" e esse 'HOJE EM DIA' é um momento tão ou mais estranho do que tudo que presenciamos no livro e no filme, fica difícil confiar completamente nessa informação.
E falando no personagem-narrador, ele já não é o mesmo nesta continuação. Nos quadrinhos não acompanhamos o fluxo de pensamentos da mesma pessoa que, em sua dissociação de identidade, criou Tyler Durden. Na verdade, estamos dentro da mente do próprio Tyler, compreendendo sua visão dos fatos e seguindo seus comentários sobre o que Sebastian vivencia. Esses comentários acabam sendo o ápice das críticas sociais e comportamentais da obra. Enquanto personagem, Tyler surge de maneira mais radical e agressiva. Não adianta criticá-lo; ele simplesmente não vai pedir desculpas pelas emissões de carbono de seu avião particular.
O mundo em Clube da Luta 2 avançou em algumas direções inesperadas. Talvez seja essa a primeira dica que temos de Chuck Palahniuk querendo incitar o leitor a se confrontar com o que ele espera da continuação (e que vai desembocar em uma metalinguagem mais adiante). Quase dez anos se passaram, e Sebastian parece ter dado uma grande volta para retornar ao mesmo ponto de sua jornada inicial, porém com o adicional de estar casado e ter um filho. Apesar disso, sua vida nada mais é do que uma cópia de uma cópia de uma cópia... Sua aparente rotina monótona é controlada por remédios e cinquenta minutos, três vezes por semana, de terapia. Esses elementos são apresentados de maneira fantástica ao leitor, com a sobreposição de comprimidos e cápsulas de remédios sobre as ilustrações e diálogos, com a intenção de ocultar algo do leitor, controlando seu acesso à informação, assim como os efeitos das medicações no protagonista. Este recurso se mostra envolvente na narrativa, assim como o estilo de escrita de Chuck Palahniuk na obra anterior. Mais a frente, outros elementos surgem com o mesmo propósito, já que em poucas páginas descobrimos que Marla está a trocando os remédios de Sebastian por açúcar.
Como é de se imaginar, não haveria continuação sem Tyler Durden, mas não pense que você o encontrará da maneira como o deixou após a leitura do livro ou de assistir o filme de 1999. É difícil saber se Tyler está mudado, ou se realmente nunca o conhecemos, ou se ele se tornou maior do que seu criador. De qualquer forma, há uma explicação sobre a sua origem e como ela se relaciona aos antepassados de Sebastian, ao mesmo tempo em que Chuck flerta mais uma vez com a metalinguagem para nos fazer compreender a reta final dos quadrinhos.
Mas o que está diferente? Em Clube da Luta 2 temos um Tyler vaidoso que, por trás da liderança de 'Erga-ze ou Morra', planeja mortes, atentados terroristas e muita manipulação para conquistar poder. Mas não pense que essa mudança é em vão. O propósito é fazer com que o leitor se confronte sobre o que ele achava que sabia sobre Tyler Durden. Mais uma vez, isso se torna parte da mensagem que Chuck quis discutir nessa continuação.
A primeira parte da história é bem próxima do que eu esperava de uma narrativa de Chuck nesse formato de quadrinhos, e também é a única que se assemelha as suas predecessoras. Sim, falo no plural, pois Clube da Luta 2 é uma continuação de ambas obras, literária e cinematográfica (mesmo que o autor não possa admitir isso por questões de direitos autorais sobre o filme). Isso é perceptível até pela arte dos personagens, que se aproximam dos atores do filme, mas sem cometer exageros de replicar seus rostos. Quando Sebastian percebe estar perdendo o controle após um incêndio, ele começa a refazer seus passos, e é aí que as coisas mudam de tom. Enquanto Tyler/Sebastian nos conduz pela sua "loucura", Marla trilha um caminho bem diferente. Esses eventos introduzem a segunda parte da trama e começam a acrescentar elementos fantásticos, principalmente com Marla. Então, livre de tentar manter coerência ou verossimilhança, o enredo começa a degringolar até culminar em seu complicado final. Ou melhor dizendo, finais.
Alguns elementos reaparecem na continuação, como a casa da Paper Street e os programas que são desenvolvidos lá dentro, Cara de Anjo e Robert Paulson. Este último mais parece cumprir um papel fantasioso de Deus Ex Machina na versão zumbi.
O autor também faz a quebra da quarta parede, ou melhor, a engole após o primeiro final que não é exatamente um final. É aí que a relação entre livro e filme é necessária para se entender a história, pois em sua aparição, ele resolve discutir com os fãs. Nesse momento Clube da Luta 2 não mais retoma o enredo com a proposta de criar um final que feche a história, ou seja, Chuck Palaniuk se torna um personagem para realizar uma crítica a maneira que o público se relacionou com a sua criação. Se isso já é estranho por si só, mais estranho ainda é vê-lo justificar esse ato e cair dentro da própria crítica que tenta fazer. Em dado momento, quando Tyler é apresentado como um parasita psicológico hereditário na família de Sebastian, ele explica como as ideias nos habitam e sobrevivem enquanto pessoas morrem. O próprio Chuck, então, invés de finalizar a história (que é explicada pela sua parceiras da editora) mostra sua relação com o público que bate à sua porta. Sabendo que ideias não tem donos e ele não pode controlar a maneira com que seu público se relaciona a elas, por que escrever vinte páginas tentando fazê-lo?
Bom, preso na armadilha da própria crítica, o leitor aprende com o autor sobre como ele pensa o processo criativo e sua recusa em dar um final feliz que mantém o status quo sócio-econômico e blá blá blá. Mas isso é uma discussão cuja resposta vem com a razão de Chuck decidir por realizar a continuação. Em entrevistas, ele revela muitas coisas, como a diferença do processo criativo entre livro e quadrinhos, como foi repensar os personagens e as questões que seriam abordadas (como a paternidade), mas o motivo da continuação não é revelado de maneira a ficar elucidado. Em suas palavras para a MTV, ele chega a dizer que precisava recuperar para si a sua própria criação que se afastou dele. Se soubesse que falaria sobre ela pelo resto da vida, teria feito algo maior dela, como uma mitologia, como vemos nas obras de Lovecraft e Stephen King. Outro ponto interessante dito por ele é que havia oitenta coisas que ele não poderia pegar do filme e utilizar na continuação, pois os direitos pertencem ao estúdio cinematográfico.
Após esse bizarro segundo final, há um extra: a versão em quadrinhos do final do livro de 1996. Pessoalmente, achei uma bela homenagem à própria obra e que me fez refletir sobre como eu gostaria que uma versão nesse formato de quadrinhos fosse feita para adaptar o livro de 96 por completo. Esse extra também me fez questionar se existiria Clube da Luta 2 caso o filme nunca tivesse sido feito.
Sobre os aspectos gráficos, é impossível não mencionar a beleza dos desenhos de David Mack. Todos são hipnotizantes e conseguem transportar o leitor para uma imersão profunda na loucura de Sebastian/Tyler. É imensamente satisfatório simplesmente pegar a HQ nas mãos e admirar as artes de Mack, relembrando a leitura e os personagens. No entanto, ele ficou responsável apenas pela capa e pelos intervalos dos capítulos, enquanto a história foi desenhada por Cameron Stewart. Não há o que se criticar, mas confesso que gostaria de ter acompanhado essa jornada insana por meio de outros traços. Levando em conta o trabalho gráfico sobre suas ilustrações, o resultado final combina bastante com os eventos e as loucuras vividas por Sebastian/Tyler. Vale a pena ficar folheando novamente certas cenas, como a do museu e as lutas.
Ao final, tudo nos leva a refletir: por que Chuck fez essa continuação? Sinceramente, não sei.