O Babuíno de Madame Blavatsky

O Babuíno de Madame Blavatsky Peter Washington




Resenhas - O Babuíno de Madame Blavatsky


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Bruno Oliveira 25/06/2017

Sobre gurus, crentes e charlatães
(Publicado originalmente no "Ao invés do inverso")

Tão logo passou a produzir resultados que foram tidos como profícuos até mesmo pelo público leigo, a ciência que sucedeu Newton gradativamente se impôs como o melhor conhecimento disponível ao Ocidente e ofuscou até outras tradições com as quais já se relacionara longamente, como a Religião e a Filosofia, sendo que as tradições as quais não desejavam ou que não eram capazes de se adequar aos critérios da ciência sem se descaracterizar completamente tiveram que se reinventar para sobreviver, fosse a confrontando ou mesmo a ressignificando.

Ao mesmo tempo em que esse novo saber se restringia cada vez mais a poucos pesquisadores altamente especializados, paradoxalmente, ele foi também impondo ao grande público certa racionalidade laica dependente antes de demonstrações que de crenças particulares a qual é fomentadora daquilo que chamamos hoje de “espaço público”. Diante disso, várias religiões se depararam com a escolha de se restringirem ao espaço privado como meras idiossincrasias, ou de buscarem formas alternativas de permanecerem como conhecimento público, afinal, se era possível curar doenças graves e inventar maquinários revolucionários apenas aplicando “luz natural” na investigação da natureza, que valor teriam as especulações que se voltavam para o místico além da simples satisfação pessoal?


Já no século dezenove surgiriam dúzias de religiões que tentavam reconciliar velhas ortodoxias com o novo espírito científico, às vezes, até mesmo nomeando a si mesmas como “científicas” para aproveitar o prestígio que a ciência começava a angariar. São exemplos disso os espiritualismos franceses, o mesmerismo, as ideias de Swedemborg e muitas outras tradições que se viram ameaçadas por um conhecimento intrincado e pouco intuitivo que ia surgindo em contraposição ao velho imaginário aristotélico que por tanto tempo perdurou no Ocidente.

O babuíno de madame Blavastky traça uma espécie de linha do desenvolvimento dessas religiões a partir de um caso específico: a Teosofia. Rastreando as origens dessa religião e contando sua história até nossos tempos, o crítico literário Peter Washington busca expôr de que modo a Teosofia sintetizou padrões para grupos religiosos e, algumas vezes, até os engendrou e serviu como uma espécie de modelo de sucesso em que gurus, crentes e charlatães vieram a se inspirar dali por diante.


Um mundo de medíocres

Lembro de ter lido em algum lugar de Descartes uma biografia intelectual, de Stephen Gaukroguer, que depois de ter escrito grande parte daquilo que o fez entrar para a História da Matemática, René Descartes passou a acompanhar com relutância qualquer coisa que seus pares escrevessem sobre o assunto. Quando teve notícia dos trabalhos de Fermat, por exempĺo, hesitou em lê-los por temer perder tempo descobrindo o que já sabia, afinal, por que despender seu tempo em coisas já conhecidas em vez de investigar outras que ainda não tinham sido descobertas?

Atualmente é evidente Descartes estava errado — sobre Fermat, sobre o quanto conhecia matemática e sobre outras coisas mais, entretanto, ele não errou simplesmente por arrogância ou tolice; sua pretensão de conhecer inteiramente a matemática de seu tempo nada tinha de ridícula, na verdade, no século dezessete ainda era possível ao pensador europeu dominar a totalidade do conhecimento de seu tempo e, da Matemática à Metafísica, tudo era alcançável com uns bons anos de estudo. Os mais destacados, além de compreender muitos campos, até propunham inovações significativas em vários deles. Newton e Leibniz, por exemplo, disputaram longamente a respeito de quem teria descoberto primeiramente o cálculo infinitesimal (salvo engano, por meio de um discípulo de Leibniz), e essa foi meramente uma de suas contribuições para a história do pensamento.

Os leitores desses tempos antigos (sempre raros, é bom que fique dito) conheciam um grande número de áreas do conhecimento e dialogavam com elas sem muita dificuldade, podendo acompanhar até mesmo as disputas mais específicas e profundas de cada uma delas sem que perdessem o contato com as outras. A circulação de cartas nas quais filósofos e cientistas debatiam questões complexas em alto nível era bastante comum e levava a polêmica para diferentes pesquisadores (aliás, o próprio Descartes usou bastante desse procedimento).

Diante dessa história sobre o filósofo, todavia, é fácil pensarmos que o grande gênio matemático e filosófico do século XVII foi um tolo ao subestimar Fermat, o que constitui uma grande prova de que estamos cada dia mais longe dos velhos polímatas, já que diferentemente deles nosso apartamento daquilo que há de mais avançado em cada área do conhecimento é tal que sequer entendemos bem o que cada uma delas desenvolve hoje em dia. Até criamos uma palavra para aquele que pesquisa o “detalhe do detalhe” de uma área: o especialista. Cada especialista estuda um pequeno pedaço da realidade que está em constante disputa para ser cada vez mais repartido e dividido entre outros especialistas, além de usar uma linguagem própria — quase como um dialeto — que impede a aproximação do público não especializado, de modo que, exceto no que diz respeito ao punhado de realidade que ele estuda, tal especialista é tão ignorante quanto esse público.

Tamanha foi a expansão e a repartição do saber nos últimos séculos que é impossível hoje para qualquer um dominar o que há de melhor nas várias áreas do conhecimento, sendo exatamente aí que entra a instituição escolar: ela faz com que todos que a frequentam conheçam o básico a respeito de muitas coisas. Nela aprendemos a contar até cinco, o ponto de ebulição da água e em que palavra cabe o acento diferencial. Ou nem tanto.


*


Embora garanta algum conhecimento rudimentar de ciência, filosofia, ciências humanas e artes, mesmo uma instrução básica de ótima qualidade nunca chega a apresentar em profundidade nenhuma dessas áreas. “Todos os caminhos levam à ignorância” é o que diz Manoel de Barros e sua frase serve bem aqui, uma vez que, do especialista ao iletrado, todos hoje somos medíocres, quer dizer, somos aqueles que estão no meio, que não se sobressaem e conhecem por ouvir dizer os muitos campos do conhecimento, ainda que possam “dominar” medianamente um ou outro.

A maneira pela qual consumimos cultura, ciência e arte dentro dessa nova condição é transformada na medida que não temos conhecimento a respeito do melhor de cada área e nosso julgamento acerca delas fica restrito a um tipo de bom senso sobre as coisas. Por exemplo: conquanto não saibamos bem como provar o heliocentrismo, não deixamos de considerar obtuso ou, no mínimo, excêntrico aquele que ainda hoje crê que a terra é o centro do universo. Nos afastamos naturalmente dessas pessoas ainda que elas queiram debater. O mesmo se dá com quase tudo o que consumimos em nossa cultura, o que faz com que fiquemos dependentes de mecanismos institucionais (universidade, especialistas, institutos de pesquisa e controle de qualidade, etc.) para separarmos o joio do trigo formarmos nossa própria opinião de uma forma curiosamente contraditória: por meio da opinião de outros em quem confiamos. Tendemos assim a ouvir aqueles que apresentam os distintivos institucionais e a ter alguma razoabilidade para não considerar seriamente coisas muito malucas, mesmo que não saibamos ponderar os argumentos que as sustentam.
Quando porém as instituições falham ou, especificamente no período abordado em O babuíno de madame Blavatsky, quando ainda não existe uma relação muito sólida entre essas instituições e a sociedade, o público tende a ficar à deriva do que tem sido produzido de melhor em seu tempo e mais vulnerável a crendices de toda sorte. Se hoje, paralelamente ao mercado de livros especializados, dispomos de um mercado forte voltado o público leigo, com diversas obras que tentam contornar as dificuldades de sua falta de conhecimentos específicos e lhe apresentar de forma convincente e as inovações de diversas áreas, esse quadro foi formado ao longo de um grande período de tempo e certamente não existia no tempo de Blavatsky. Como nos relata o autor, os livros da teosofista tiveram má aceitação dentro da academia (p.62) e foram imediatamente entendidos como misticismo e pseudociência, o que não impediu de modo algum a boa vendagem e uma boa recepção entre o público leigo.

Evidentemente, eu não estou ressaltando isso para sugerir que hoje esse acontecimento seria completamente diferente e que o público leigo do presente rejeitaria o livro por ter um maior acesso a informação, mas que a depender dos mecanismos institucionais que se formavam já naquele tempo, uma parte enorme da cultura iria para a lixeira de imediato, em outras palavras, não são pelos mecanismos institucionais mas por meio da multidão de medíocres que essa herança cultural se conserva. Teosofia, Espiritismo, Logosofia e companhia são tradições que florescem na mediocridade e pela mediocridade, aproveitando-se do tipo de formação cultural lacunar e repleta de incertezas gerada a partir dela.

Foi um mundo cada vez mais alfabetizado e tão ignorante quanto sempre foi que se abriu para as “religiões científicas” e é a partir dele que elas devem ser pensadas.


O novo paradigma

Conforme a credibilidade das explicações mitológicas do mundo perdeu força foi necessário reinventar a religião diante do secularismo sem porém desprezar os benefícios que ele trazia, verdadeiros “milagres” jamais produzidos por qualquer entidade já cultuada na Terra. Com isso, diversas religiões buscaram algum tipo de proximidade (real ou dissimulada) com a ciência, colocando-se também como ciências ou tentando realizar alguma interpretação desse conhecimento que dissolvesse qualquer oposição com ele.

Ainda que quisessem parecer “científicas”, tais religiões nasceram em grande parte da pena de indivíduos que estavam interessados em ciência no entanto não eram necessariamente grandes cientistas ou filósofos. Por mais que revindicassem grande rigor para suas criações, seus criadores nunca conseguiram disfarçar o quanto elas eram apenas a reelaboração de crenças e doutrinas anteriores, constituindo antes tentativas de reconciliação da cultura vigente com as novidades da época que resultados substanciais de teorias científicas em elaboração. Kardek, Blavatsky, Pecotche e uma infinidade de outros fundadores de religiões dessa safra não eram herdeiros de pensadores religiosos sofisticados como Tomás, Avicena ou Maimônides, e nem mesmo de adversários seus como Ockham, Descartes, Espinosa, mas apenas pensadores medianos que aproveitaram aquilo que sobrou — como senso comum — das grandes obras do pensamento em seu próprio tempo. Até podemos encontrar em O livro dos espíritos provas da existência de deus que lembram vagamente aquelas dos filósofos medievais, por exemplo, porém sem a profundidade admirável que tinham em seu contexto original, pois se trata apenas de um resto de uma Metafísica sofisticada sobrevivendo na mediocridade popular.

O livro de Peter Washington traz boas informações a esse respeito ao tomar a Teosofia como uma espécie de paradigma que sintetiza (sem inventar) várias tendências que influenciariam as religiões seguintes tanto do ponto de vista da “política institucional” quanto da “teologia” dessa religião.

Por certo, a política institucional é a mais longamente abordada em todo o livro, sendo desenvolvida a partir da apresentação das biografias dos líderes da teosofia, o que abrange desde Blavastsky até pensadores que, embora não fossem teosofistas, se associaram a eles em algum momento, como um de meus escritores favoritos, Aldous Huxley. Pessoalmente, algo que eu quis saber acerca desse assunto e que infelizmente não estava no livro era em quais camadas sociais a Teosofia conquistava adeptos, em outras palavras, a Teosofia é uma religião de pobres? De ricos? De pessoas ligadas a culturas específicas? Para o meu pesar, O babuíno de madame Blavatsky não dá tais respostas e como a Teosofia não tem grande distribuição no mapa do Brasil, tenho poucos meios para descobrir isso.

Já a questão “teológica” é abordada de forma bem menos detalhada e mais esparsa, sendo preciso teorizar um pouco para entender o que o autor pensa dela, pois ele nem mesmo explica minimamente os conceitos da Teosofia antes de começar a analisá-la. Suspeito que talvez tais conceitos façam parte da cultura geral do país do autor ou que ele não os considere importantes para o entendimento da obra (o que não seria verdade, pois é preciso ao menos alguma noção do assunto para não perder o sentido dos acontecimentos). Sei lá. Até as disputas entre as diferentes concepções que os líderes da teosofia só são abordadas em seu aspecto teórico na medida em que explicam a biografia deles, o que me faz pensar que Washington não liga muito para a Teosofia como religião; só como sistema de crenças que motiva e explica as ações de determinadas pessoas.

Por conta disso, a ausência desses tópicos atinentes ao lado mais teórico desse credo não é bem um defeito mas mais uma consequência do foco do livro, que não se dedica a explicar nem a doutrina teosófica, nem os seus adeptos, porém apenas a trama que envolve gurus e figuras carismáticas e espirituais importantes na ordem ou para a ordem. Conquanto até exista uma breve explicação do caso das irmãs Fox, do mesmerismo e outras doutrinas em aqueles que fundaram ou vieram à teosofia estavam metidos, elas se dão sem grandes aprofundamentos (o que não as torna menos interessantes) e dada a raiz orientalista dessa religião, as crenças de outras raízes são pouco abordadas em sua relação com a Teosofia e quase nada é dito sobre o judaísmo, o cristianismo, etc. Uma pena.


Instituição e intimidade

As instituições religiosas não só atraem fracos de corpo e espírito como também, com muita frequência, fazem a manutenção dessa fraqueza em proveito próprio. A queda, o pecado original, a proximidade da matéria, a imperfeição humana, a distância do criador… Existem desculpas teológicas aos montes que justificam a fraqueza humana ao mesmo tempo em que oferecem um caminho religioso (e institucional) que supostamente a enfrentaria, sendo que por mais que os religiosos possam encontrar conforto para sua mazelas quando frequentam tais ambientes, eles também voltam para chorá-las de novo e de novo sem jamais romper esse ciclo de dor. Afinal de contas, a religião institucionalizada nos liberta da dor ou somente cria pequenos espaços em que somos consolados (circunstancialmente) dela? Se essas instituições tornassem as pessoas mais fortes ou as libertassem daquilo que as aflige, então essas pessoas não deveriam também se libertar da necessidade de recorrer à religião como um consolo? A melhor igreja não seria justamente aquela a fazer com que os fiéis fossem capazes de abandoná-la? Quando colocamos essa reflexão diante daquilo que sabemos de história, nós rapidamente a tornamos absurda, pois as instituições religiosas não tendem a ter essa postura emancipadora e comumente se ajustam ao status quo político e social, por pior que ele seja.

Para além desse seu aspecto negativo, todavia, a religião também abre um espaço “íntimo-existencial” a qualquer um que é sem igual no restante da sociedade e constitui bem mais que uma antessala de manipulações. Qualquer um pode entrar num templo e desesperar, rogando às suas entidades por uma solução definitiva para problemas insolúveis e nenhum outro lugar, talvez nem a cabeceira da cama, será tão apropriado para isso. Além disso, a religião permite que se vivam sentimentos magníficos os quais podem dar significado a toda uma vida, e também que se pense e deseje o impossível, que se discutam as questões sem resposta, os anseios irrealizados, os grandes propósitos e, é claro, que se peçam forças para enfrentar a vida. Aquele resto de realidade, sentido e mistério que a razão não toca e a ciência não sistematiza, é calorosamente acolhido dentro da religião, e é tolice ignorar isso.

Sendo assim, ainda que o aspecto institucional e o aspecto existencial se confundam, cumpre não interpretar a religião como algo meramente vilanesco ao nos depararmos com suas faltas, como também não interpretá-la como se fosse o mero resultado interioridade humana ao contemplarmos suas manifestações genuínas. Felizmente, o livro de Peter Washington é bastante eficiente nesse sentido ao apresentar a história da Teosofia sem a necessidade de julgá-la de forma parcial. Ao mesmo tempo em que mostra as infintas falcatruas de Blavatsky e dos demais líderes da Teosofia, ele retrata também as vidas daqueles teosofistas que acreditam verdadeiramente em suas ações.

Não é por acaso que essa religião acabou atraindo tanto oportunistas como Leadbeater, que souberam aproveitar o interesse do público leitor por espiritualismo (ele escreveu, por exemplo, uma série de biografias de suas vidas passadas que venderam bastante e renderam uma boa polêmica pública para a religião), quanto sujeitos acima de qualquer suspeita como Huxley, que simpatizou com a Teosofia e com Krishnamurti durante certo tempo, embora fosse um “cético”. Washington mostra que há algo de real e ao mesmo tempo dúbio nessa crença sem porém julgá-la em si mesma, posto que as poucas reflexões que ele faz ao longo do texto visam somente criar interpretações plausíveis para os acontecimentos, no entanto, o leitor tem mãos um material farto e dificilmente resistirá a essa tentação.


Doutrinas secretas, personalidades públicas

Ainda que de uma maneira bem pouco sistemática, Washington sintetiza alguns mecanismos da Teosofia que a ajudaram a prosperar como instituição, analisando tanto o comportamento de seus líderes quanto dos seguidores dessa crença. Nesse sentido, a figura do guru, repleto de sabedoria e guia das massas, captador de novos adeptos e rosto público da religião é importantíssima dentro do livro, sendo que grande parte da obra orbita em torno de nomes como Annie Besant, Ouspensky e outros que contribuíram para a divulgação e a produção de polêmicas que mantiveram sua religião sempre em evidência. Para o autor, eles não são importantes simplesmente pelos indivíduos que são, porém porque inauguram certa forma de agir que seria retomada diversas vezes dali por diante por outros líderes religiosos, o que o leva a ir bem além da raiz teosófica iniciada em Blavatsky para abordar também espiritualistas que entraram em contato com a religião ou que, existindo no mesmo período que ela, compartilhavam crenças ou seguiam caminhos parecidos. Tais indivíduos compõem o miolo do livro e a maioria deles é realmente interessante, pois — como todo guru — suas personalidades são uma mistura de falta de critérios para conhecer, desvios morais, fanatismo, ingenuidade, loucura e força de caráter, de modo que nem sempre é claro o quanto eles creem ou não naquilo que pregam.

Pela descrição de Washington, aqueles gurus que em algum momento de suas trajetórias perceberam as ciladas habituais da instituição e as denunciaram ou simplesmente a deixaram, acabaram sendo mal compreendidos (p.276) ou reinterpretados de forma a atenuar suas críticas, mesmo que ao custo da traição de suas palavras, tendo sido bastante comum que, diante de um guru questionável, os teósofos simplesmente o trocassem por outro sem deixar de endossar suas teses, ou que, diante das falhas da doutrina, apenas a trocassem por outra quase igual. Particularmente, tenho muitas inquietações a respeito desses comportamentos. Será que as pessoas estão sendo honestas— e tolas — quando fazem isso ou há alguma desonestidade envolvida? Estão querendo salvar uma instituição ou suas próprias crenças? E qual é a necessidade de manter as próprias crenças se elas estão em constante abalo diante de evidências contrárias?

Uma resposta curta parece insuficiente e redutora, uma vez que mesmo um sujeito como Krishnamurti, que cria sinceramente naquilo que pregava e estava muito distante de ser um aproveitador obsceno como Gurdjieff, passou a vida vivendo em boas casas, desfrutando da companhia de belas mulheres, conhecendo inúmeros países, tendo luxos que só ricos possuem (p.350) e prescrevendo aos seus fieis um modo de vida que ele mesmo só podia praticar por viver uma vida de privilégios.

Aliás, fraudes, ardis e má fés dessa religião estão por todo livro, chegando a ficar desinteressantes depois de certo tempo, dado o volume de ocorrências: Blavatsky aplicava golpes rotineiramente e humilhava seus discípulos (certa vez, fez Leadbeater circular por um navio, entre os passageiros, carregando um urinol cheio, por exemplo); Annie Besant chegou a controlar os direitos literários das obras de Blavastky e a adulterá-las para que conviessem mais com seu ponto de vista; Gurdjieff era um sociopata tão repulsivo que parecia mais uma figura literária que um ser humano, etc.

A contradição é constante na vida desses gurus e, ao lado de alguns casos muito interessantes e bonitos como o de Olcott e sua relação com o budismo e as questões nacionais do Ceilão, temos outros pavorosos envolvendo pedofilia, chantagem, abusos, embustes de todo os tipos e sujeira para fazer transbordar qualquer esgoto.


Clichês sem véu

Apesar de alguns mecanismos pelos quais a Teosofia é salva de seus “desvios” serem discutidos na obra, no fim das contas, é bem mais lógico concluir que a enganação simplesmente faz parte do espetáculo religioso. De maneira pouquíssimo sistemática Washington faz uma espécie de síntese de clichês que essa religião de alguma forma agrupa e fiz questão de anotar e organizar por nunca ter visto algo semelhante em outro lugar.

O primeiro deles diz que, em algum momento longínquo do passado, existiu uma era de ouro na qual a humanidade estava mais próxima da divindade e os problemas pelos quais passamos inexistiam, porém, geralmente por erros humanos, essa era acaba e por isso vivemos num mundo decaído. Segue-se daí outro clichê: a crença de que apesar do fim da era de ouro podemos buscar um retorno à divindade cuja forma variará, é claro, de religião para religião, mas a mais comum envolve a busca de sabedoria, iluminação ou mesmo a redescoberta de uma doutrina remota cuja pureza estaria empoeirada pelas religiões atuais (aliás, a antiguidade ser sinônimo de importância esotérica é outro clichê). Desses clichês seguem-se outros mais, como a ideia de que existe uma irmandade de mestres intervindo no curso da humanidade para garantir a salvação e que existem estágios evolucionários pelas quais passaremos até chegar lá, o que pode muito bem se somar a velhos conhecidos como a reencarnação, a existência de outras realidades, comunicação com mortos ou entidades, a imortalidade da alma, a nobreza do espiritual versus a profanidade do material, entre tantos outros que conhecemos bem. Isoladamente, cada um desses clichês é antiguíssimo, mas eles ganham certa originalidade quando se articulam de forma engenhosa em novas religiões.

Se já nos ocorrem naturalmente vários exemplos de credos que usam e abusam desses clichês, o autor ainda dedica os últimos capítulos de sua obra para apontar os filhos diretos da Teosofia, cujos princípios de um modo ou de outro retomavam a síntese que o autor vê nela e somam a isso as solicitações históricas de suas circunstâncias: as causas ambientais, a procura de espaço na mídia (graças à massificação do televisor), a promessa de satisfação das demandas da sociedade de consumo (sucesso, sexo, beleza), ou até mesmo a adoção de superstições de épocas específicas, como a crença em OVNIS.

Para nós que podemos encontrar os rituais mais secretos de cada religião numa simples busca na internet, que já vimos o misticismo e a autoajuda se tornarem verdadeiros fenômenos editoriais, nenhum desses clichês constitui novidade e nenhuma religião atualmente nos é muito estranha, a despeito das crenças que possamos ter; mas isso não significa que superamos a superstição. Temos exemplos dela em toda parte: das energias quânticas bregas até os fanatismos políticos que há por aí.

Ao que parece, a superstição é tão volátil quanto as religiões em que se aninha, uma serpente que troca de pele sem jamais morrer.


Depois do auge

Particularmente, considero que O babuíno de madame Blavatsky funciona melhor como trabalho histórico e biográfico que como um livro sociológico ou literário, algo curioso porque o autor é um crítico literário. Sua obra é bastante documental, pouco tocando a seara das teorias, teologias e afins. Nenhuma página é perdida tentando mostrar que Blavatsky não falava com seres espirituais ou que Leadbeter não tinha qualquer acesso à irmandade oculta, embora histórias dessa sorte rodeassem tais personagens; contudo, há sempre certa preocupação por parte do autor de explicar a que serve cada um desses trololós místicos no jogo de interesses da instituição teosófica e o volume documental que o sustenta é de impressionar. Fico feliz que existam pessoas que mergulhem tão fundo num tema.

Washington data a queda da Teosofia como ocorrendo já na primeira metade do século passado. Diversas decisões administrativas mal tomadas diminuíram o poder da organização e na medida em que seus líderes carismáticos foram morrendo sem ser substituídos, a instituição perdeu a face pública (bem como a necessidade de espetáculos) e abandonou gradativamente aquelas práticas escandalosas que compuseram sua rotina. Com o tempo, seu crescimento esmoreceu e, embora ainda tenha sua influência, hoje a Teosofia é uma religião pouco significativa na geografia mundial.

A nós brasileiros esse é um credo bastante estranho o qual não tem muita relação com nosso cristianismo de berço, por isso, acho interessante pensar que ainda assim ele possa estar presente em nossa cultura de algum modo, que é o que o livro aponta. Por detrás de sua pompa, de sua aura besta de mistério que é só falsa profundidade, a Teosofia não deixa de ser uma resposta a algo bem humano que é nosso velho anseio a respeito de quem somos e o que devemos fazer nesse percurso do útero à tumba. Gostando ou não de suas respostas, há que se respeitar aquilo que a suscita e, se possível, aprender com ela.

site: https://aoinvesdoinverso.wordpress.com/
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