@pedro.h1709 27/07/2020O anticristoEu li "O anticristo" de Nietzsche por duas vezes seguidas, a primeira de suas obras com a qual tenho contato. Primeiro tive de me adaptar à forma de escrita e depois me coloquei a refletir sobre os detalhes de seus argumentos, os quais revelam muito de sua filosofia pessoal, para além da crítica ao cristianismo. Creio ser possível dizer que há mais do que os questionamentos particulares de Nietzsche expostos nessas páginas, existe também algo do pensamento comum à sociedade alemã e europeia contemporânea ao autor.
Há tanto para se observar neste título que, os textos considerados por mim como os mais significantes foram quase uma transcrição integral do livro. Da mesma forma, é praticamente impossível fazer uma resenha breve e que não fique muito aquém da enormidade de conteúdo comprimida nessas cento e oito páginas; por isso, vou dividir meu texto em três partes.
1 - Conceitos de Nietzsche:
Primeiro, quando Nietzsche diz que: "A verdade não é algo que um homem tenha e outro homem não tenha..." (Pág 83), ele não defende que não exista uma concepção correta quanto a verdade, pelo contrário; e portanto, deve haver também um conceito quanto à mentira: "Chamo de mentira a recusa de ver o que vê, ou a recusa de ver as coisas como elas são; não tem importância se a mentira for dita ou não perante testemunhas." (Pág 87)
Ele vai acusar, então, os sacerdotes e partidários de, apesar de perceberem a verdade, mentirem deliberadamente, professando uma falsa fé ou crença pela mera "Vontade de Poder", privando os demais do ânimo pela vida e do saber, transformando tais interesses em pecados ou transgressões. Nietzsche vai atacar a manipulação do entendimento sobre a verdade e a transformação das virtudes em desvirtudes.
"Em primeiro lugar, ele sabe que tem muito pouca importância uma coisa ser ou não verdadeira, enquanto se acreditar que é verdadeira. Verdade e fé: eis dois mundos de ideias totalmente distintos..."
Pág 36
"O homem não podia descobrir sozinho o que era o bem e o que era mal, assim Deus lhe ensinou Sua vontade... Moral: O sacerdote não mente; a questão "verdade" ou "inverdade" nada tem a ver com as coisas que o sacerdote discute; é impossível mentir a respeito de tais coisas. Para mentir, seria preciso saber o que é verdadeiro. Isso, porém, está além do que o homem pode conhecer..."
Pág 88
Segundo, as definições de "bom" e "mau":
" O que é bom? - Tudo que aumenta a sensação de poder, a vontade de poder, o próprio poder, no homem.
O que é mau? - Tudo que brota da fraqueza."
Pág 14
Nesse sentido, torna-se evidente, afinal, que Nietzsche se opunha mais ao aspecto da falta de integridade no discurso cristão para a dominação do que contra a dominação em si, já que valorizava o poder dos grandes impérios como o grego e o romano.
"Não contentamento, porém mais poder; não paz a qualquer preço, mas guerra; não virtude, mas eficiência (virtude no sentido de Renascença, virtu, virtude livre do ácido moral)."
Pág 14
A crítica principal contra o cristianismo está no aspecto de este não permitir precisamente "o próprio poder no homem", mas valer-se da debilidade dos indivíduos como princípio de seus dogmas. O homem deve ser, desta maneira, "pecador" e dependente de tantos outros argumentos subjetivos e "inventados" para salvar-se, como a "fé", a "alma" ou o "espírito".
2 - A crítica aos valores cristãos:
"...o que Epicuro combateu: não foi o paganismo, mas o "cristianismo", quer dizer, a corrupção das almas por meio dos conceitos de culpa, castigo e imortalidade."
Pág 97
A primeira crítica de Nietzsche ao cristianismo será a inversão dos princípios que valorizam a vida para aqueles que a degeneram. Ainda que se possa defender os cristãos no sentido de condenarem o aborto e o suicídio como princípios de defesa à vida, o filósofo vai se opor aos ideais que tornam a vida enferma, através dos quais ocorre a desvalorização do corpo, das experiências terrenas e, portanto, da realidade.
"(uma religião) Que se convencia que é possível carregar uma alma perfeita no cadáver de um corpo..."
Pág 80
"A grande mentira da imortalidade pessoal destrói toda a razão, todo o instinto natural - em consequência tudo nos instintos que é benéfico, que estimula a vida e as salvaguardas do futuro, tudo isso se torna um motivo de suspeita. Assim, viver esta vida já não tem sentido: aquilo se torna, então, o "sentido" da vida... Para que ter espírito público? Para que ter orgulho na prole ou nos antepassados? Para que os homens trabalharem juntos confiarem uns nos outros, ou se preocuparem com o bem-estar comum ou procurarem servi-lo?... tudo isso não passa de outras tantas "tentações"..."
Pág 65
"No cristianismo, nem a moralidade nem a religião têm qualquer ponto de contato com a realidade. O cristianismo oferece apenas causas puramente imaginárias... e efeitos puramente imaginários."
Pág 26
Segundo o autor, esta desconexão com a realidade seria a responsável pela ofuscaçao da percepção sobre causas e efeitos naturais; o que provocou a condenação da busca pelo saber, pois as coisas deste mundo já não poderiam mais fazer sentido para a religião.
"Quando as consequências naturais de um ato já não são naturais, mas consideradas como produzidas pelas fantasmagóricas criações da superstição - por "Deus", por "espíritos", por "almas" - e tidas como consequências meramente "morais", como recompensas, como castigos, como advertências, como lições, então são destruídos todos os alicerces do saber..."
Pág 77
O cristianismo era para Nietzsche, desta maneira, um movimento de ressentimento dos fracos contra os forte e seus valores.
"O cristianismo tomou o partido de todos os fracos, os baixos, os falhados; fiz um ideal do antagonismo de todos os instintos de auto preservação da vida saudável; corrompeu mesmo as faculdades daquelas naturezas intelectualmente mais vigorosas, apresentando os mais altos valores intelectuais como pecaminosos, ilusórios, plenos de tentação."
Pág 16
Outro ponto abordado pelo filósofo é a concepção de um Deus cristão completamente bom que, segundo o autor, representa a degeneração da divindade, devido aos interesses religiosos. Nietzsche faz então a distinção entre o Deus de uma nação, representando força, poder e justiça para o seu povo, o qual acredita em si mesmo, e o Deus bondoso cristão, que tudo aceita e tudo perdoa. Deus não pode ser justo e bom ao mesmo tempo.
Nietzsche vai defender também que Jesus foi o único cristão que existiu e que teve sua mensagem deturpada por seus posteriores. A mensagem de Cristo consistia em não resistir, não se defender. O verdadeiro cristianismo, segundo o filósofo, não é uma fé na salvação através de Cristo, mas atos, uma evitação de atos, um estado de espírito.
"Qual é o sentido de "Boa-nova"? - a vida verdadeira, a vida eterna foi encontrada - não é meramente prometida, está aqui, está em ti; é a vida que reside no amor livre de todos os recuos e exclusões, de toda a observância de distâncias. Todos são filhos de Deus - Jesus nada pede para ele somente - como filho de Deus cada homem é igual a todos os outros homens..."
Pág 47
"...O "reino do céu" não é algo que os homens devam esperar: ele não tem ontem nem depois de amanhã, não chegará a um "milênio" - é uma experiência do coração, está em toda parte e não está em parte alguma..."
Pág 55
A ascensão de Cristo e sua ressureição, no entanto, desconstrói o argumento de Jesus como o filho de Deus que veio ao mundo para ter a experiência de um homem na terra, pois, sendo todo homem pecador, Jesus não teve pecados e também não morreu como todo homem, se tornando, mais uma vez, algo superior ao homem, sem contato com o mundano.
"Por outro lado, a selvagem veneração daquelas almas completamente desequilibradas já não suportava doutrina evangélica, ensinada por Jesus, do igual direito de todos os homens serem filhos de Deus: sua vingança assumiu a forma de elevação de Jesus, de uma maneira extravagante, assim o separando deles próprios; da mesma maneira que, nos tempos antigos, os judeus, para se vingarem de seus inimigos, separaram-se de seu Deus e o colocaram em grande altura."
Pág 62
Quando se questiona, por exemplo, nos mitos gregos a semelhança das ações dos Deuses com as humanas, percebe-se que talvez apenas na filosofia judaico-cristã Deus é posto como um ser superior, a parte de seu próprio povo.
Por fim, Nietzsche vai criticar ainda os valores cristãos como a "fé", a "esperança" e o "amor"; conceitos mais uma vez associados à subjetividade e ao que distingue da realidade.
Fé:
"Quando, por exemplo, um homem sente algum prazer vindo da noção de que tenha sido salvo do pecado, não lhe é necessário que seja de fato pecador, mas apenas que se sinta pecador."
Pág 36
Esperança:
"O homem deve ser mantido no sofrimento por uma esperança tão alta que nenhum conflito com a realidade possa desafiá-la..."
Pág 36
Amor:
"O amor é o estado em que o homem vê mais Decididamente as coisas como não são."
Pág 37
3 - Nietzsche e o Nazismo:
É interessante perceber que muito da filosofia de Nietzsche (que não era nazista, pois seu período de vida é anterior ao surgimento do Nazifascismo) influenciará e será utilizada pelo partido fascista alemão, mesmo que adaptada aos seus interesses; como por exemplo, os itens enumerados a seguir:
Primeiro, ao defender uma categoria excepcional de seres humanos (Super-humanos), que poderia compreender até uma raça inteira segundo o autor; indivíduos capazes de superar a dominação cristã sem pender ao niilismo, sujeitos destinados à plenitude e à acumulação de poder; ideias reforçadas pela menção de Nietzsche a um povo mítico hiperbóreo, e que foi associado ao ideal de eugenia do povo ariano.
"O nosso destino - era a plenitude, a tensão, o armazenamento de poderes, ansiávamos pelos relâmpagos e pelos grandes feitos; afastavamo-nos o mais possível da felicidade dos fracos, da 'resignação'..."
Pág 14
OBS: O que coube muito bem ao período pós primeira guerra, no qual o povo não queria se resignar com as duras sanções impostas à Alemanha.
"...em tais casos, manifesta-se, sem dúvida, um tipo superior, algo que, em comparação com a massa do gênero humano, parece uma espécie de super-homem. Tais felizes ocorrências de alto sucesso têm sido sempre possíveis... Até mesmo raças, tribos e nações inteiras podem ocasionalmente representar esses felizes acidentes."
Pág 15
Segundo, há um caráter antissemitico na crítica ao cristianismo de Nietzsche, que considera o cristão e o judeu, e em especial o judeus polonês, como os páreas, a ralé e os falhados; desprezíveis em seus valores e astutos em seus atos; mas que devem, ao mesmo tempo, ser tratados com cautela. Ainda que alguns defendam que Nietzche não fosse antissemita, creio que a crítica de uma prática ou costume associada a um povo é suficiente para que os membros daquela nacionalidade se tornem alvos e sejam atingidos em qualquer lugar que estejam.
"Pereçam os fracos e os falhados: primeiro princípio de nossa caridade."
Pág 14
"...os judeus são o povo mais fatídico na história do mundo; sua influência falsificou a tal ponto o raciocínio da humanidade a esse respeito que hoje os cristãos podem cultivar o antissemitismo, sem compreender que ele nada mais é que a consequência final do judaísmo."
Pág 38
"Os judeus são o oposto de decadentes; simplesmente, foram forçados a parecer sobre aquele disfarce, e com uma habilidade que se aproxima do non plus ultra do gênio histriônico, conseguiram colocar-se à frente de todos os movimentos decadentes e torná-los algo mais forte do que qualquer grupo que diga francamente Sim à vida."
Pág 39
"A responsável é a raça. Todo judaísmo aparece no cristianismo como a arte de engendrar mentiras santas..."
Pág 67
"É tão possível encontrar-se "os primeiros cristãos" para companheiros como judeus poloneses: não que se precise procurar uma objeção a eles... Nenhum dos dois tem cheiro agradável."
Pág 72
Terceiro, e por último, existe uma grande exaltação dos grandes impérios antigos como o grego e, principalmente, o romano. A valorização destas sociedades não se dá apenas pela sua organização, mas por seus produtos intelectuais de apreciação da realidade e dos valores da vida, da capacidade de exercício do poder e dominação. Tal consideração provavelmente influenciou o desejo do partido nazista na construção de um grande império, o "Reich".
"O que ali se erguia, aere perennius, o Imperium Romanum, a mais perfeita forma de organização em condições difíceis que foi alcançada, e comparada com a qual tudo que houve antes e tudo que veio depois aparece como um diletantismo canhestro e frouxo..."
Pág 95
"O Imperium Romanum que conhecemos, e que a história das províncias romanas nos ensina a conhecer cada vez melhor, a mais admirável de todas as obras de arte de grande porte, estava apenas no começo..."
Pág 96