Che 29/06/2017
PREVISÃO LINDAMENTE DESENHADA
Minha segunda experiência com o roteirista Mark Waid - de quem eu já conhecia a excelente e relativamente pouco conhecida saga "O Retorno de Barry Allen" - foi tão proveitosa quanto a primeira. A história tem uma premissa muito boa, que cumpre o que promete, personagens espertamente (re)imaginados e, principalmente, um desenho magistral realizado por Alex Ross.
A maior 'pegada' do roteiro é o afastamento do Superman da humanidade, após um herói mais jovem e ascendente chamado Magog (infelizmente, menos explorado pelo roteiro do que merecia) ser o protagonista de um episódio sangrento envolvendo o Coringa que mudou os rumos do vigilantismo dos super-humanos, sancionado não só pelo clamor popular, mas também pela imprensa e até pelo judiciário.
A partir daí, começa uma era na qual os heróis passam a ser mais violentos, inicialmente com apoio dos seres humanos ordinários, até a coisa sair de controle e a presença do auto-exilado Clark Kent, bem como de toda a 'velha guarda' de poderosos que seguiram seu exemplo, se fazer necessária para conter a verdadeira zona que a relação humanos/super-humanos virou no transcorrer da última década. Contar mais do que isso é arriscar entregar aqui spoilers fundamentais, que podem estragar a experiência de quem ainda não leu, numa história cheia de reviravoltas nas quais personagens secundários, em especial a Mulher-Maravilha e um envelhecido Bruce Wayne, tomam atitudes inesperadas.
Waid, no final do século XX e tentando imaginar como seria o mundo dali alguns anos, através das metáforas usadas em seu roteiro, acertou em praticamente tudo. Logo nas primeiras páginas, por exemplo, há um restaurante que mostra o vigilantismo desenfreado como cooptado pelo mercado, fazendo dessa fetichização dos herói um meio de ganhar dinheiro. Ou seja, era o avanço do Mercado mesmo diante daquilo que ele próprio gera de perverso. O aumento da midiatização do judiciário, previsto no julgamento do Magog, também é outra previsão certeira de Waid, lembrando que o autor escrevia essa história na época de julgamentos ultra espetacularizados como o de O. J. Simpson.
Chega a ser uma HQ perfeita? Na humilde opinião deste que vos digita, não. Tem um desperdício grande envolvendo o Magog, que já apontei acima, um personagem-chave que merecia ter maior importância no enredo. Também achei meio boçal a narração envolvendo o pastor McCay, com direito a um monte de citações bíblicas e todo um nheco-nheco relacionado a isso que acaba dando um ar meio pedante e até moralista relacionado a esse personagem onipresente, algo como a 'lição a ser aprendida com a história'.
Mas de todos os fatores de "Reino do Amanhã", o que mais me chamou a atenção foi a arte deslumbrante e gloriosa de Alex Ross, feita em guache, praticamente uma série de pinturas do tipo que vão pra museus, refinadíssimas e incrivelmente detalhadas, bastante realistas em vários quadros. Deve ter demorado um bocado pra fazer! Acho que é a melhor arte que vejo em HQs em um bom tempo, restando a curiosidade em saber o que mais Ross desenhou por aí com esse apuro todo.
Finalmente, resta concluir que "Reino do Amanhã" é uma previsão (acertada) de Waid lindamente desenhada por Ross. E ainda tem um epílogo descontraído, bem escrito e que fecha bem a narrativa.