Thereza 28/06/2020
A Coragem de Existir
Esse livro é essencial. Eu sei que essa frase é muito repetida em qualquer livro que trate de temas importantes, mas é a primeira vez que eu realmente julgo justo usá-la para descrever uma obra. Esse livro é essencial se você está vivo em 2020 e quer compreender que há inúmeras vivências que diferem da sua.
A abordagem é a melhor possível. São 4 autores que, ao passo que foram vivendo, compreenderam que o gênero ao qual foram designados ao nascer não condizia com o que realmente eram. O que é interessante aqui é que consegue-se entender que não é porque uma pessoa é trans que sua transição e sentimentos são semelhantes aos de outras pessoas trans. Aqui temos 4 pessoas muito diferentes, com histórias e construções, pensamentos e trajetórias especialmente singulares. É tão importante isso, fazer enxergar que não é possível definir alguém, mesmo que essa pessoa esteja sob um “rótulo”.
Amara Moira, um dos nomes que mais gostei de conhecer na vida (o nome mesmo, lindo demais), travesti e bissexual, inserida num ambiente ao mesmo tempo aberto e fechado que é o meio universitário. O texto dela é o primeiro, o que imagino que deva ter sido intencional, já que com ela aprenderemos alguns termos que à primeira vista podem parecer pequenos, mas ela nos faz compreender que saber usá-los é uma questão de respeito. E respeito é um conceito muito importante dentro da narração de Amara, porque além de nos ensinar sua importância, parece que conforme os anos passam em sua história, ela própria começa a entender melhor como é essencial aplicar esse conceito a si, como precisamos aprender a respeitar nossa existência. O que, como uma pessoa cis, me faz refletir: se eu tive que aprender com os anos a importância de ter respeito por quem sou, independente do que se espera de mim (e ainda não posso dizer que atingi o essencial), só posso imaginar como deve ser a sensação de não pertencer a nada que tenha sido designado a si ao nascer. Posso ter problemas com meu corpo, mas ele me pertence. Uma vivência que nunca vou compreender de fato.
João W. Nery vem em seguida com sua narrativa. Sua história tem essa construção entre altos e baixos, entre esses momentos em que sentimos que “agora vai” e outros que sentimos sua angústia por mais uma vez não conseguir ser quem é. Ele foi uma das primeiras pessoas trans no Brasil a passar por cirurgias de redesignação sexual. Seu médico, inclusive, foi preso anos depois por ter ajudado pessoas trans a terem um corpo que lhes pertencesse. Ele também teve muito destaque com sua militância e livro, chegando a ceder entrevista pra Marília Gabriela, na única entrevista que até hoje eu vi a entrevistadora receosa ao falar. Com ele também compreendemos como que uma pessoa trans precisa, o tempo todo, sair do armário e passar por constrangimentos dentro do ambiente de saúde. Ele decidiu se ser numa época em que as mudanças em seu corpo eram crime, em que era preciso falsificar documentos para ter a dignidade de ter um nome com o qual se identificasse, onde ele tinha medo de aparecer na mídia e ter problemas com a justiça. Ele tem muito a nos contar.
Márcia Rocha é formada em direito e uma empresária de sucesso. Sua história me é bastante peculiar pelo ambiente em que está inserida. Imagine se um “homem” que você considere muito bem sucedido e o admire por seus empreendimentos diga que, na verdade, ela é uma mulher e aquele corpo que você sempre via era apenas uma farsa para continuar inclusa na sociedade? Reflita se você continuaria admirando e se aina cogitaria fazer negócios com uma mulher trans. Foi por isso e muitas outras barras que Márcia precisou passar ao se mostrar pro mundo. Mas ela conseguiu passar do melhor modo que posso imaginar, ela conseguiu uma posição muito importante dentro de sua posição, uma posição que lhe permite lutar pelos semelhantes, que permite fazer a voz de pessoas trans serem ouvidas e respeitadas. Ela também nos ensina que nós podemos ser amados mesmo quando isso parece impossível. Talvez tenha sido a história que mais mexeu comigo.
T. Brant, aqui o único que conhecia. O que é um problema que tenho refletido: por que não conheço pessoas tão visíveis e importantes que não sejam cis? Esse livro me fez trabalhar pra mudar isso. Bem, eu conheço ele do Pânico na Tv (acho que ainda chamava assim quando ele apareceu, mas esse detalhe é irrelevante), me lembro de como me senti bem ao vê-lo na TV. Mas me deixe explicar, quando o vi, eu o entendi como uma mulher lésbica e eu não conhecia muitas mulheres lésbicas na mídia, o que me fez querer forçar um crush nele porque eu queria desesperadamente ter artistas em quem ter crush. Hoje percebo meu erro (desculpe), mas é interessante porque a todo momento na narrativa ele fala sobre como sempre quis sim “confundir” as pessoas, não deixar que o definissem por completo. Eu gosto disso. Sua narrativa é a mais leve de todas, foi quem dos 4 teve mais apoio dos pais e quem parece ter tido a transição mais tranquila. Apesar da dificuldade que ele claramente enfrentou, eu gostaria que todas as pessoas trans pudessem encontrar o que ele encontrou em seu caminho.
Por fim, quero dizer como esse livro fez uma transformação em mim. Desde a apresentação já somos puxados pra uma realidade que muitas vezes ignoramos. Como eu disse, jamais vou entender como é a sensação de ser uma pessoa trans. Mas de uns tempos pra cá e com esse livro, eu pude compreender que existência muitas histórias e vivências e sentimentos que eu nunca vou compreender, mas nem por isso são menos reais que os meus. Portanto, ao fim de tudo, quero te dizer: você pode teorizar sobre o que quiser, você pode e deve questionar tudo à sua volta, mas você nunca pode duvidar da existência de alguém e é sua obrigação respeitar todis (com exceção de pessoas intolerantes). Pergunte se tiver dúvida. Mas não suponha algo que pode machucar outrem.
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