Queria Estar Lendo 05/09/2017
Resenha: Os Homens Explicam Tudo Para Mim
Como eu vou começar a resenha de Os Homens Explicam Tudo para Mim, isso é o que eu venho pensando desde que terminei a leitura. Leitora convicta de ficção eu fui completamente atraída pelo título de um dos lançamentos mais recentes do Grupo Pensamento -- que cedeu o exemplar para resenha -- e tive uma grata surpresa. Gratíssima. A maior de todas. Digo com todas as letras que esse foi o livro mais importante que eu li esse ano.
Os Homens Explicam Tudo para Mim é um compilado de ensaios da jornalista, historiadora, ativista feminista e autora premiada, Rebecca Solnit, e foi muito mais do que eu estava esperando que fosse. Em uma narrativa circular, a autora fala de feminismo abrangendo diversos tipos de violência contra a mulher -- desde aquelas que achamos mais brandas, como o mansplaining, até o assassinato -- e tudo isso de uma forma muito linear, levando o leitor em uma jornada para compreender que toda essa violência remota a um denominador em comum: o silenciamento das mulheres.
Abrindo o livro com o famoso ensaio Os Homens Explicam Tudo para Mim, onde ela relata um caso particularmente absurdo onde um homem indicava o livro de Rebecca para ela mesma, sem se dar conta de que ela era a autora, e assim cunhando o termo mansplaining, Rebecca Solnit começa estabelecendo uma conexão entre a condescendência masculina de nos explicar assuntos que dominamos e eles não, de forma paternalista que nos silencia e, ainda, põe em dúvida nossa credibilidade acerca do tema; e como essa perda de credibilidade escala até colocar em dúvida a credibilidade das mulheres ao denunciar as violências que vivemos.
"A violência é uma maneira de silenciar as pessoas, de negar-lhes a voz e a credibilidade, de afirmar que o direito de alguém de controlar vale mais do que o direito delas de existir, de viver."
A autora trata, em vários de seus ensaios, sobre a crença milenar de que mulheres não são confiáveis, são criaturas manipuladoras, mentirosas patológicas e não temos se quer credibilidade para denunciar aquilo que é feito contra nós. Em seu ensaio "A Síndrome de Cassandra" ela usa Freud como um exemplo bastante claro, uma vez que o psicanalista, ao escutar suas pacientes e constatar que muitas delas relatavam histórias semelhantes de abuso na infância, decidiu que era mais simples explicar essas histórias através do desejo dessas mulheres -- suas histórias não eram, de fato, reais, apenas a manifestação daquilo que elas gostariam que tivesse acontecido -- do que acreditar que de fato homens, pais, pudessem fazer isso com suas filhas. Pois, caso o que elas diziam fosse verdade, ele estaria desafiando toda a estrutura hierárquica da sociedade para ajudá-las.
E é dessa forma, através de analogia e anedotas, que Rebecca Solnit constrói sua narrativa a respeito da prática ancestral de silenciar mulheres -- chegando aos extremos do assassinato -- para manter um sistema de poder baseado em gênero; trazendo a tona a importância de nomear as violências -- cultura do estupro, senso de direito ao sexo -- e como isso força a sociedade a perceber esses crimes como um padrão, uma pandemia, e não os casos isolados que querem fazer parecer.
O livro me fisgou já no título, porque que mulher nunca escutou um homem lhe explicando algum assunto que ele não dominava -- e ela sim -- como se tivesse muita propriedade nele? Desde tecnicalidades profissionais, como foi um dos casos mais recentes comigo, até homens tentando explicar às mulheres sobre menstruação e feminismo, as opções são vastas. Mas o que me manteve na leitura foi a capacidade de Solnit de nos mostrar que mesmo a mais "branda" das violências, aquela que parece boba e da qual rimos depois, está aí com um propósito muito firme: nos calar, mostrar que não temos credibilidade ou domínio sobre qualquer assunto que seja, nem mesmo os nossos corpos.
"[...] A violência [de gênero] é, antes de qualquer outra coisa, autoritária. Ela começa com essa premissa: "Eu tenho o direito de controlar você"."
Através de nove ensaios somos levados por uma narrativa que explora a cultura do estupro e faz claras e simples ligações entre as "brincadeiras bobas" como base para a perpetração de violências como feminicídios e estupros, cuja base da impunidade continua sendo construída em cima da suposta personalidade mentirosa patológica das mulheres. Fato bastante evidente na crescente discussão sobre "falsas denúncias de estupro" que tomam as pessoas sempre que um novo estupro é denunciado, como se as falsas denúncias fossem a epidemia, e não o estupro, transformando os homens nas reais vítimas -- e só para esclarecer, o número estimado de falsas denúncias é de 2% a 5%, exatamente o mesmo de falsas denúncias de furto, embora nunca duvidamos da honestidade da vítima de furto quando ela faz uma denúncia; mas ainda assim estima-se que apenas 20% dos estupros sejam reportados justamente pelo tratamento que a vítima recebe ao fazê-lo, desde o policial que faz deboche do crime até o juiz que pergunta se a vítima tentou fechar as pernas.
Eu não consigo nem começar a falar sobre como me senti lendo o livro. Ele traz dados que são assustadores e revoltantes -- como o fato de que uma mulher sofre violência doméstica a cada nove SEGUNDOS nos Estados Unidos ou que o maior risco a vida de uma mulher grávida por lá é o seu marido ou parceiro ou, ainda, que no mundo inteiro mais mulheres entre 15 e 44 anos morrem e/ou são mutiladas vítimas de violência masculina do que vítimas de câncer, malária, guerras e acidentes de trânsito, tudo somado.
"Pense em quanto tempo e energia nós teríamos a mais para nos concentrarmos em outras coisas importantes se não estivéssemos tão ocupadas em apenas sobreviver."
E quanto mais eu lia, mais revoltada eu ficava. Revoltada porque em pleno 2017 eu ainda tenho que escutar sobre como dizer que "todos os homens são potenciais estupradores" é uma generalização e que generalizações "afastam" pessoas que pensam o contrário da discussão, em vez de poder focar no assunto que importa: as violências que as mulheres estão sofrendo e como preciso dar suporte para a voz delas. Revoltada porque eu não entendo como possam existir pessoas que "pensam o contrário" da premissa simples de que toda e qualquer violência deve ser repudiada. E revoltada porque não entendo como todo mundo não está revoltado?
Foi uma leitura intensa, mas uma que acredito ser de grande valia, principalmente para mulheres como eu, que ainda estão descobrindo o feminismo como um movimento multidimensional e cuja profundidade e impacto ainda não compreendemos por completo. É um tema denso, complexo, e bem mais amplo do que a simples guerra entre os sexos que querem nos fazer acreditar, e ler Os Homens Explicam Tudo para Mim me ajudou a perceber isso mais ainda.
"O que querem? Ganhar um biscoitinho por não bater, estuprar nem ameaçar as mulheres?" [...] "Claro que #NemTodosOsHomens são misóginos e estupradores, mas #SimTodasAsMulheres vivem com medo dos que são"."
Os ensaios fazem paralelos entre política, economia e a luta feminina aos quais eu ainda não tinha escutado e finalmente cunha termos para coisas que eu só sabia como sentir, mas não compreendia como por em palavras. Colocar nomes nos sentimentos foi como levantar um nevoeiro da minha cabeça.
"[resultado de um estudo sobre estupro na Ásia, em 2013] concluiu que em muitos casos, o motivo para o estupro era, simplesmente, a convicção que um homem tem o direito de ter relações sexuais com uma mulher, independente do desejo dela. Em outras palavras, os direitos dele superam os direito dela, ou ela não tem direitos algum."
Mas se você está achando que o livro só me provocou revolta, o ensaio final "A Caixa de Pandora e a Polícia Voluntária" nos dá esperança. Começando a falar sobre como os demônios de Pandora jamais retornarão para o jarro, Rebecca Solnit nos lembra que as ideias não podem voltar para a caixa depois que você as deixou sair, não completamente. Nos lembra que estamos caminhando uma estrada longa e que não sabemos quando vamos chegar ao fim dela, mas isso não significa que é uma perda de tempo. Basta que olhemos para trás e todos os quilômetros que já percorremos, para todas as pessoas que caminham a mesma estrada que nós.
"O feminismo não é um esquema maléfico para prejudicar os homens, mas sim uma campanha para libertar a todos nós."
Nos lembra que "nesta guerra morrem pessoas, mas não é possível apagar ideias". Nossa luta vai continuar muito depois de não estarmos mais aqui, mas nosso legado não vai desaparecer.
Por fim, não posso deixar de recomendar esse livro. Leiam, leiam muito. Leiam e reflitam e presenteiem amigos com ele. Rebecca Solnit é uma voz poderosa dentro do feminismo pós-moderno e seus ensaios -- que também estão disponíveis online, em inglês -- são leituras que recomendo, especialmente, para mulheres como eu, que ainda estão começando a explorar o multidimensionalismo dessa caminhada.
"Cultura do estupro é um ambiente em que o estupro é predominante e a violência sexual contra mulheres é normalizada e desculpada na mídia e na cultura popular. A cultura do estupro é perpetuada pelo uso da linguagem misógina, a objetificação do corpo da mulher e a glamurização da violência sexual, criando uma sociedade que ignora os direitos e a segurança das mulheres. A cultura do estupro afeta todas as mulheres. A maioria das mulheres e meninas limita seu comportamento devido à existência do estupro. A maioria das mulheres e meninas vive com medo do estupro. Isso não acontece com os homens, de modo geral. É assim que o estupro funciona, como um meio poderoso pelo qual toda a população feminina é mantida numa posição subordinada a toda a população masculina, apesar de que muitos homens não estupram, e muitas mulheres nunca são vítimas de estupro*."
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