Vibração e descompasso

Vibração e descompasso Clara Baccarin




Resenhas - Vibração e descompasso


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Krishnamurti 23/07/2017

Vibração e descompasso
A vida tem momentos esplendorosos de revelação como este:
“Esses dias eu tive a sorte de presenciar a linda e forte cena de uma borboleta saindo do casulo”.
Até aí nada de tão esplendoroso dirão alguns. Mas a revelação que um fato assim causa a quem sabe e quer olhar, transforma a cena corriqueira em revelação: “...Quanta coragem e força precisou ter esse intermediário entre lagarta e borboleta para poder encontrar o mais pleno de si? Quantas lutas consigo mesmo precisou a borboleta empreender para entender que mesmo que tão quentinha, confortável, familiar fosse a sua situação de lagarta no casulo, era menos do que ela veio ser neste mundo? Chega uma hora de maturação em que as leis do universo nos impulsionam a rompermos as nossas bolhas protetoras. Vai haver dor? Sim, mas ficar já não é mais uma opção”.
Os trechos acima foram retirados da crônica “A gente não pode ajudar, com as próprias mãos, uma borboleta sair do casulo”, da escritora Clara Baccarin, que consta de seu mais novo livro “Vibração e descompasso” editado pela Laranja Original, onde estão reunidas 81 crônicas ‘poéticas’. Algumas dessas crônicas são tão carregadas de poeticidade que poderiam facilmente ser nomeadas de poemas em prosa. Um desafio literário sempre oportuno e que, ressalte-se, vem lá do século XIX quando escritores como Baudelaire (com seus poemas em prosa) ratificaram a tese de que os gêneros textuais se entrelaçam e de que não existe a sonhada pureza.
A comunicação entre poema e prosa nessa autora se torna cada vez mais visível (e vamos citar apenas uma de suas crônicas, que é o bastante), na presença de um lirismo encantador e, portanto, essência da poesia que fala principalmente sobre elementos da vida cotidiana. São textos constituídos a partir do caráter subjetivo, intrínseco à poesia. Se a crônica é uma narrativa voltada para dentro, a crônica também se apresenta como tal. Nasce do olhar particular da autora sobre acontecimentos diários para neles ver mais que a aparência, e por isso mesmo, focalizar as forças secretas da vida. Não se limita a descrever uma situação ou um objeto que tem diante de si, mas os examina-os, penetra-os e os recria buscando sua essência, pois o que interessa não é o real visto em função de valores consagrados (muito desse ‘real-falso’ consagrado a autora demole sem piedade). Os textos vão se estruturando a partir de dois eixos principais: A experimentação da relação entre poema e prosa e a temática do cotidiano como motivo que alimenta tanto a poética quanto a prosa.
Em nossa contemporaneidade marcada pelo exibicionismo exacerbado, a relação entre literatura e vida é problematizada por meio de um relato quase autoficcional. A redescoberta do sujeito floresce enquanto matéria textual na proposta de um olhar para o âmago do ser, para o entendimento do “eu” do mundo e do “eu” no mundo. Crônicas nascidas da vida simples, do trabalho, dos objetos mais corriqueiros, onde estão implicados temas como o amor, as convenções e falsidades sócias, o encontro consigo mesmo, ou ainda a manipulação social que as mulheres são submetidas. Mais um trecho da mesma crônica:
“Como podemos querer abrir frestas para uma nova versão da gente mesmo? E deixar para trás nossas firmes verdades, reaprender a andar (ou a voar!) nos olhar no espelho e nos desconhecermos por completo?!”
Projetada na sua produção textual, na sua composição, a autora tem a liberdade de viver o enigma de transportar-se para a esfera ficcional como se visse diante de um espelho. O espelho funcionando como mediador, que serve não para refletir frívolas vaidades, mas que possibilita novas indagações, ou rompimento com imagens que não servem mais. Fenômeno que deve ser entendido pelo viés fictício, pois mesmo que se reflita acerca da experiência da autora, a verdade autobiográfica não é significativa. A relevância, o desafio está na investigação que se transforma em entidade textual. Valem os questionamentos que faz, e a forma com que elabora em textos a nossa essencial contradição – matéria viva de sua contemplação e arte. E assim convida o leitor a passear e, de certa forma, a se envolver. Ao constituir sua subjetividade, a autora inventa e reinventa a palavra, em uma mistura intencional de estilo e voz, internamente persuasiva. Sensibiliza e faz refletir num processo de criação textual que está também intimamente ligada ao processo de construção de sentidos. A emoção estética que ela desperta advém de escolhas conscientes minuciosas e atentas para resgatar o componente humano; e o faz com simplicidade, profundidade e transparência.
Clara Baccarin vem pulando etapas. Em 2015 publicou o romance “Castelos tropicais” muito bem acolhido pela crítica e público, no ano seguinte foi a vez da poesia em “Instruções para lavar a alma” e agora este “Vibração e descompasso” (algumas das crônicas foram publicadas em sites e revistas literárias), onde mais uma vez o humano é a matéria-prima de sua escritura. O leitor sente as feições de quem escreve, critica, argumenta, aconselha, interroga, debate, erra, acerta. A transparência e essência de uma literatura assim são a de ser humano para ser humano que sussurra sonhos e temas, numa escritura simples, original sem preocupações com rótulos e enquadramentos. Aos leitores é impossível resistir a uma sedução tão pura e tão fascinante como esta:
“Vem, segura a sua xícara de café fresco enquanto eu seguro a minha. Senta ao meu lado na varanda, respira sem pensar em nada. Somos apenas duas crianças brincando sem culpa”.
Sem culpas a conversarem sobre a centralidade do que há de mais ancestral na humanidade: a intuição, a sensibilidade e o afeto. Ou por outra, as vibrações e descompassos dessa contingência a que chamamos vida.
Livro: Vibração e descompasso – Crônicas poéticas, de Clara Baccarin. Laranja Original Editora e Produtora – São Paulo, 2017, 208p.
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