Otávio - @vendavaldelivros 21/09/2023
“- Mas é isso mesmo, não quero outra coisa! Pois o senhor acha justo que esses senhores gordos, que andam por aí, gastem numa hora com as mulheres, com as filhas e com as amantes, o que bastava para fazer viver famílias inteiras?”
A desigualdade do Brasil não nasceu hoje, mas sim no exato momento que o colonialismo pisou nessas terras. Se hoje o racismo estrutural e a desigualdade social pesam de forma imensa nos retalhos sociais do país, é possível imaginar nos primeiros dez ou vinte anos após sermos o último país das Américas a abolir a escravidão?
Publicado como livro em 1909, “Recordações do escrivão Isaías Caminha” é o primeiro livro de Lima Barreto a chegar ao público, mesmo não sendo o primeiro a ser escrito. Nele, narra com maestria a história de um pobre garoto negro, filho de um padre, que se muda do interior para a capital e passa a trabalhar na imprensa carioca.
A acidez do texto, o estilo muitas vezes sarcástico e o retrato da cidade do Rio de Janeiro do começo do século XX se juntam em um livro que funciona como crítica social às desigualdades e como crítica à figuras de imprensa expoentes do período, que na obra acabam tendo seus nomes trocados, mas não suas personalidades, o que facilitou a identificação por editores futuros.
Sei que a obra é conhecida por sua crítica social, mas pra mim o livro é um recorte muito nítido da imprensa do Rio de Janeiro à época e de seu poder sobre o povo, políticos e governos. Uma imprensa que ignorava a ética na hora de inventar ou aumentar fatos, assim como já explorava o potencial dos “jornais de sangue”, apelando para a violência e as fofocas sociais.
Gostei muito do livro e me surpreendi positivamente pois nunca havia lido nada de Lima Barreto e escolhi começar não por sua obra mais famosa. Gostei muito do cenário e do recorte sobre a imprensa, além do estilo do autor ser mais direto que outros do mesmo período. Entendo quem não curta, mas recomendo se sua vontade for ler um clássico que desnuda forças políticas que existem até hoje no país e seguem dando base para a desigualdade e para o racismo estrutural.