Procyon 19/05/2024
Vidas Secas ? Resenha
A obra mais emblemática do escritor alagoano Graciliano Ramos, Vidas Secas tem como principal demarcador estético a predominância do silêncio. Publicado em 1938, o quarto e último romance de Graciliano narra os problemas da seca, da fome, do desamparo, da miséria, da violência, da desigualdade social, a luta de classes, entre outros. O livro conta a luta pela sobrevivência diante do flagelo da estiagem por uma família de retirantes do sertão nordestino. Difícil é se dizer brasileiro e nunca ter sequer ouvido falar na cadela Baleia (nome este por si só imbuído de conotações a respeito da água, ou da falta dela, em meio à seca).
Sob um pano de fundo telúrico, o autor apresenta personagens psicologicamente complexos, marcados pela interioridade, apresentando densidade, e, além disso, por serem condicionados a uma vida subumana, tendem a uma fala entrecortada. Sua linguagem sumária é muito impelida pelo personagem Fabiano, pai da família, que traz na alpercata uma visão fatalista, e que representa uma condição animalesca ao qual eles estão submetidos. A própria personagem Baleia é alçada à condição humana (vide que, ao contrário dos filhos de Fabiano e Sinha Vitória, ela possui nome), enquanto os demais são rebaixados à condição de bicho-homem (?agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado.?, p. 17).
Dentro de uma narrativa episódica, porém bastante econômica, o livro revela a indigência rural, a incomunicabilidade entre pais e filhos, relações de poder e dominância, exploração, roubo, humilhação e abandono. Tudo dentro de um estilo seco, objetivo, e com uma prosa enxuta, ? embora porventura haja uma quebra nessa dinâmica, como no capítulo de Baleia ?, e que condiz com a aridez do sertão, onde até mesmo o apuro estilístico do autor é muitas vezes confundido com uma rigidez formal. Utiliza-se o discurso indireto livre, onde narrador e personagens por vezes se confundem. A estrutura do livro é dada por treze capítulos, sendo que doze deles passam-se na seca e um (Inverno), passa-se em meio às chuvas, dividindo a obra.
Como representante da segunda geração do modernismo brasileiro ? a geração regionalista de 1930 ?, Graciliano trata a narrativa com verossimilhança e sob tipificações sociais (os personagens representam homens e mulheres que estão sob condições análogas às da família de Fabiano). Graciliano vai além de servir os desígnios formais do Romance de ?30, pois existem também uma originalidade da experiência proporcionada por sua narração, uma quebra com a cronologia tradicional entre capítulos, além de uma narrativa de denúncia e crítica social ? não panfletária ? ao Brasil de tempos políticos efervescentes (Estado Novo, Entreguerras, etc.).
Ocorre, ainda, na obra, problematizações de diferentes temas de caráter social. Numa época de utopia migratória e de êxodo nordestino devido à estagnação econômica e secas constantes, o livro é influenciado pelo Primeiro Ciclo da Borracha, e seu título quase paradoxal remete à esterilidade de vida, de condições mínimas para a sobrevivência humana. Para tanto, o romance tem um caráter cíclico e uma estrutura fragmentária (ao que o notório cronista Rubem Braga chamou de ?romance desmontado?), de modo que ele começa e termina com as personagens rumando a um não lugar. À parte isso, existe uma dinâmica formal quase cinematográfica em relação à montagem dos planos, no qual várias cenas estão direcionadas sob várias perspectivas (ou ângulos).
O livro também evidencia classes subalternas sob o jugo do latifúndio e da seca. Note-se, por exemplo, o soldado amarelo, o fiscal da prefeitura e o dono da fazenda que antagonizam com Fabiano e representam a opressão do poder institucional controlado por práticas oligárquicas (e lembremos, ainda, que o soldado amarelo pôs Fabiano na cadeia porque procurava exercer autoridade e discriminação com um tipo social que julgava mais fraco, de maneira que sua força vinha ?de cima?, ou de fora, não do seu interior, como acontece com Fabiano). Por fim, numa relação contraditória entre sertão e cidade, o autor propõe uma reflexão da realidade brasileira sob a vista da falta de comunicação e sob um retrato da deficiência linguística no país, sob uma ótica denuncista, enxergando fatores como o descaso, as desigualdades sociais e a exploração humana.
(Texto completo no Medium)