edu basílio 02/07/2021protagonismo do Leitor
ao saber do lançamento de "se um viajante numa noite de inverno", o mais novo romance de ítalo calvino, você, Leitor, entrou em polvorosa: correu para adquirir o seu exemplar e mergulhou de imediato na leitura, tendo sido mesmerizado pela atmosfera brumosa da trama já nas primeiras páginas. eis que, após a página 32, o texto recomeça exatamente como em seus parágrafos inciais.
se em um primeiro momento você achou que se tratava de um duvidoso execício estilístico, após a segunda, a terceira, e depois a quarta repetição, você constata que o que houve foi um erro de encadernação, de modo que as 32 páginas iniciais se repetem até o fim do livro. mas e agora? sua leitura foi interrompida, Leitor, bem quando seu envolvimento alcançara um
point de non-retour: você mal dorme nesta noite, e ao amanhecer corre à livraria para relatar o problema e reinvidicar um novo exemplar, sem falhas. na livraria, você conhece a Leitora, que também procura solução para seu exemplar defeituoso.
e assim, movidos pelo desejo de continuarem sua leitura de onde ela parou, o Leitor e a Leitora se lançarão em uma grande empreitada por lugares insólitos -- de escritórios atulhados de casas editoriais a gabinetes de professores universitários excêntricos especialistas em línguas obscuras -- além de se envolverem com os bastidores de ditaduras que censuram livros, um escritor que talvez não exista, um tradutor ligado a uma seita de livros apócrifos... todas essas situações levando sempre a mais um livro que se interrompe por razões diversas, como se o mundo literário tivesse se tornado uma espécie de boneca russa de livros inacabados uns dentro dos outros.
narrando o eixo da trama em uma espécie de segunda pessoa -- sempre se dirigindo a você, Leitor -- ítalo calvino construiu um delicioso e bem humorado romance metalinguístico, cheio de meditações sobre a matéria prima bruta que um escritor molda para produzir sua arte, e como essa arte afeta quem a consome. isso em si já seria inventivo o bastante, mas tem mais: os capítulos são intercalados com o suposto começo dos romances a que o Leitor vai tendo acesso ao longo de sua jornada (que, a cada página, beira mais e mais o onírico). e assim temos em mãos não somente um romance sobre romances, mas também um livro de contos mesclado. a mesa de calvino é farta.
(e para onde tudo isso converge, deixo a você, Leitor, o prazer de descobrir se se der o prazer de ler este livro.).
eu já havia lido comentários elogiosos sobre ítalo calvino, morto precocemente aos 60 e poucos anos de idade na década de 1980, mas preciso assumir que nunca tinha tido o elã de buscar algo dele para ler. por alguma razão, a inteligência algorítimica do site da amazon começou a me sugerir este livro com certa insistência, e eu acabei cedendo. zero arrependimento. muito ao contrário, vi que a obra de calvino é extensa e, até agora, muitas sinopses de livros seus fizeram soar a sirene do meu desejo. não sem algum medo, constato que a inteligência algorítimica da amazon conseguiu me apresentar a mais um escritor que caiu em minhas graças.
(o quão legível serei eu, Leitor?)
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