@al.vent 17/10/2020
Somos todos macacos ?!
“I'm a fleabit peanut monkey
All my friends are junkies
That's not really true”
Monkey Man – The Rolling Stones
Em 1957, o Dr. Louis Leakey, paleontologista e arqueólogo, solicitou uma subvenção para fazer um estudo de seis meses sobre os chimpanzés em habitat natural, pois até então nada se sabia sobre esses primatas e seu território. Acreditando que o estudo podia trazer novos conhecimentos acerca do comportamento do homem primitivo, Leakey procurou um investigador que pudesse ir para o terreno sem ter o pensamento enviesado pela teoria científica, por desconfiar da atitude predominante no seio da comunidade e impressionado pela paixão que ela tinha pelos animais, Leakey escolheu Jane Goodall, a sua secretária britânica de 26 anos, para a missão em Gombe, na Tanzânia, país localizado na África Oriental.
Até a expedição em Gombe, era defendido por muitos cientistas que só os humanos tinham mente. Só os humanos eram capazes de ter um pensamento racional, felizmente Jane Goodall não tinha frequentado a universidade, não sabia dessas coisas e tinha a sensação de estar aprendendo sobre seres semelhantes a ela, capazes de sentir alegria e tristeza, medo e ciúme.
Ao saber, por intermédio de Jane Goodall, que ela havia observado chimpanzés selvagens fabricando varetas e utilizando-as para explorar cupinzeiros, o Dr. Leakey comentou que a partir de tal descoberta seria preciso redefinir “ferramenta”, redefinir o Homem ou aceitar os chimpanzés como humanos.
Embora todas essas informações não estejam contidas no livro de Self, ele usa a fabulosa resposta do Dr. Leakey logo na introdução da obra para mostrar ao leitor que os chimpanzés têm muito a nos ensinar acerca de nossas origens e natureza. Chimpanzés e humanos possuem um ancestral comum que viveu até cinco ou seis milhões de anos atrás, nada mais que um instante em termos evolutivos, esses mesmos chimpanzés passaram a permear e intrigar o imaginário humano desde que os estudos em Gombe foram realizados e as pesquisas da Dra. Goodall foram expostas ao mundo.
É óbvio que inverter os papéis de humanos e chimpanzés não é uma faceta exclusiva de Will Self, muito menos utilizar esse recurso para criticar a humanidade e seu egocentrismo, afinal, em 1963 no romance “O Planeta dos Macacos”, o escritor francês Pierre Boule tratou dessa temática colocando três astronautas em um planeta dominado por primatas, no qual os humanos são escravos e sequer possuem a capacidade de falar. Embora o livro tenha feito certo sucesso foi a sua adaptação cinematográfica que ganhou o imaginário popular em 1968, um ano antes da chegada do Homem à lua, retratando através da sátira (ainda que mais comportada) a megalomania do imperialismo estadunidense como retrato da espécie humana em um contexto geral.
Ambientada na Londres suja e velha em meados de 1997, a história de “Grandes Símios” gira em torno de Simon Dykes, artista plástico que depois de uma farra prolongada nos clubes do West End, a zona boêmia de Londres, apaga e acorda no dia seguinte (além da já clássica ressaca em decorrência do uso de álcool e outras drogas) dando conta de que sua atraente namorada, Sarah Peasenhulme se transformou num chimpanzé de voraz apetite sexual, mas não só ela, nessa nova “realidade” o mundo é um planeta dominado por macacos.
Simon, apesar da descoberta assombrosa, continua convencido de que ele é um humano, por isso é internado em um hospital psiquiátrico sob os cuidados do Dr. Zack Busner, um psicanalista que é celebridade da mídia e pouco ortodoxo em seus métodos de tratamento, que incluem experimentações com drogas. Busner assume o caso e a tarefa de fazer o artista plástico compreender sua chimpunidade e aceitar sua condição.
Utilizando essas premissas, Will Self nos entrega uma obra repleta de sexo, violência e muito bom humor, afinal esse mundo invertido carrega o comportamento primata em sua estrutura, com muitas cerimônias de catação, acasalamento entre parentes, filas de macacos esperando a vez de desfrutar do cio das fêmeas (muitas vezes da mesma fêmea). É valendo-se dessa sátira mordaz como ferramenta narrativa que Will Self leva-nos a refletir sobre a própria natureza humana e os valores da sociedade dos anos 1990, década marcada por uma juventude em constante conflito com a questão das drogas, com a banalização do sexo e a apatia diante da vida moderna, aspectos muito bem explorados também no filme “Trainspotting” dirigido por Danny Boyle e baseado no romance homônimo do escritor escocês Irvine Welsh.
Se no livro de Welsh o grito está voltado para os jovens que assumem seus vícios como fuga de uma realidade perturbadora, na obra de Self são os já bem sucedidos londrinos de meia idade que se drogam nos escritórios, exposições de arte e em suas conversas articuladas em busca de poder e prestígio sempre regados a Prozac, Valium ou um scotch. São essas conversas que em muitos momentos trazem boas doses de reflexões acerca da humanidade e da relação existente entre humanos e primatas, sobretudo no que tange aos costumes e anseios do Homem e sua ideia de superioridade que o coloca (ou que o faz colocar-se) como o grande predador do planeta.
Em entrevista realizada no lançamento de “Grandes Símios” o autor declarou que seu objetivo é afligir os conformados e confortar os aflitos, tanto é que o gênero satírico tornou-se marca registrada nas obras do escritor londrino que, vendo seu papel como o de um legítimo provocador, o faz com inteligência, estilo, humor e originalidade, características que fazem da obra um grande registro dessa intrigante proximidade entre humanos e chimps, feita de maneira criativa para macaco nenhum botar defeito.