João Moreno 23/07/2020Chauí, eu também odeio a [alta] classe média
‘A classe média no espelho’ é o tipo de livro que me permite começar essa resenha/resumo (?) de diversas formas. Poderia dar continuidade à fala da professora Marilena Chauí, como comecei, com o título, apontando como, “por conta disso [ameaça de proletarização], parte expressiva da massa da classe média é cativa de sentimentos protofascistas, expressos tanto no integralismo da década de 1930 quanto no apoio a Jair Bolsonaro hoje em dia ” (SOUZA, 2018, p. 275) ou então citar trecho de reportagem da década de 1980 que eu encontrei, sem querer, enquanto fazia pesquisa documental, em Goiânia:
“O transporte coletivo, desse modo, está impossibilitado de oferecer conforto necessário, principalmente à classe média, que se acha muito apegada a seus carros particulares, porque temem perder seu status se misturando às diversas camadas sociais.”
Trecho da reportagem ‘Transurb inova, mas a classe média resiste ao transporte coletivo‘, de 17 de outubro de 1980. Jornal Opção
Indo direto ao ponto, ‘A classe média no espelho’ faz parte de proposta de Jessé Sousa – a partir de suas perspectivas teóricas, que bebem em Weber, Bourdieu e Charles Taylor, e entendendo que as idéias são os elementos fundadores da sociabilidade, transmitidos através de instituições até a naturalização e à incorporação destas – de dar uma nova interpretação sociológica à sociedade brasileira, uma vez que, em sua opinião, os mitos nacionais vigentes – do culturalismo ao “vira-latismo liberal brasileiro” – são instrumentos de dominação simbólica, construídos por uma “elite do atraso” e uma alta classe média que se reproduzem a partir do subdesenvolvimento do país.
“Toda interpretação dominante sobre o Brasil de hoje, por exemplo, advém desse entendimento equivocado e superficial dirigido contra os próprios nacionais” (SOUZA, 2018, p. 36).
Pode parecer estranho à primeira vista, mas, ao longo da obra, que tem na Classe Média, em suas diferentes frações e contradições – a “massa da Classe Média” e a “Alta Classe Média” –, o protagonismo, Souza (2018, p. 18-20) se propõe a:
1) “(...) provar a existência de ideias e valores que influem em nossa vida, ainda que não tenhamos consciência deles” (SOUZA, 2018, p. 18).
2) Diferenciar a Classe Média brasileira de outras classes médias, de países centrais do capitalismo;
3) Desnudar o caráter subordinador do mito-nacional brasileiro, construído pelas elites paulistas, ligados à atividade agrária e financeira;
4) Fazer uma análise sociológica comparativa entre classes sociais, tomando como partida a Classe Média;
5) A partir de entrevistas em profundidade e usando o conceito weberiano do ‘Tipo Ideal’, reconstruir a trajetória de vida de pessoas da massa da Classe Média e da Alta Média, revelando a base empírica a qual sustenta a sua argumentação teórica. É o tal espelho, sobre o qual fala no título. É nauseante, principalmente a primeira parte.
Explicitadas as intenções, Sousa (2018) fala sobre as “hierarquias morais”, como são fundamentais para pensar o homem na sociedade moderna capitalista e como definem o “eu”, o “ser”, ao contrário de nossas impressões, de donos do mundo, senhores portadores de uma “liberdade abstrata” etc. É dentro desta perspectiva que a Classe Média brasileira se constrói, diz Jessé. Se são as instituições que conformam e formam o indivíduo, a escravidão seria a principal instituição brasileira (ao contrário do mito patrimonialista de um origem portuguesa, logo corrupta). Assim como Bourdieu entendeu que a sociedade hierarquiza e as classes sociais encontram modos de se distinguirem das demais, Jessé, e talvez aqui seja o ponto alto do livro, entende que a “distinção social”, dentro de uma sociedade escravocrata, como a brasileira, permitiu a naturalização e a reprodução dos valores escravistas; é por isso que no país há uma legião de invisíveis, desgraçados, “carvão para queimar”, nas palavras de Darcy Ribeiro, em que até 100 milhões de brasileiros vivem com até R$ 500 reais por mês.
O lance de Jessé Souza com a escravidão brasileira é importante, pois, segundo o sociólogo, é a partir dela que a Classe Média se forma, em suas diferentes frações. Para além da sua formação histórica – dos “agregados”, vinculados à elite, que conseguiam a alforria –, interessa-nos, principalmente, a sua reprodução, a forma como o “capital cultural” é conquistado e transmitido.
É assim que é importante citar que a noção de classes sociais presente em ‘A classe média no espelho’ não vem do marxismo, ao contrário. Souza (2018) também não trabalha com a noção de renda, visão dos sociólogos norte-americanos. O autor trabalha com a visão de “reprodução de privilégios, sejam eles positivos ou negativos”. Assim, na visão de Jessé, o que caracterizaria a Classe Média seria a posse de conhecimento, uma vez que a propriedade privada dos Meios de Produção estaria restrita às elites, em suas diferente frações. A reprodução de “capital cultural” da Classe Média – capacidade de ler, acesso à cultura, capacidade de concentração, estímulo, possibilidade, compra de tempo –, por sua vez, está imbricada de forma inexorável à forma de “reprodução social” da “ralé” brasileira, uma vez que, para que a Classe Média ganhe tempo, faz-se necessário comprar o tempo do pobre, com baixos salários, pois o trabalho braçal, destinado aos mal alfabetizados, por conta da escravidão, será sempre desvalorizado e mal pago. E é assim que, se de um lado, há a reprodução de um “capital cultural” que permite acesso às melhores oportunidades do outro há a continuidade, a permanência, o subdesenvolvimento.
Se a distinção “negativa”, que explica o porquê policial pode matar preto na favela e tudo bem (porque parte da “ralé”), é o ponto alto do livro, em minha opinião, talvez a sua principal missão seja caracterizar o pensamento da Classe Média, as sua “hierarquias morais”, o modo como enxergam o Brasil. Para tanto, Souza (2018) precisa falar da formação da “elite do atraso” brasileira e de como uma burguesia sem industriais ditou os rumos de nosso desenvolvimento. O que fica claro no livro é que a Classe Média, tanto a “massa” como a sua “alta” fração, desempenha um papel importante na sociabilidade e rumos tomados pelo país. O Revolução de 30 e o tenentismo é o exemplo citado pelo sociólogo como o “nó górdio”, a virada de direção para todos os projetos de poder.
Jessé Sousa diz que, com a perda de poder em 1930, as frações agrária-comercial-financista da elite brasileira perceberam a importância da construção de “hierarquias morais”, consenso, hegemonias para a manutenção do poder. A Universidade Paulista seria a principal fábrica do pensamento conservador brasileiro, da hierarquia moral de certa elite que perdura até hoje: o liberalismo vira-lata que enxerga no Estado os defeitos e no Mercado as virtudes, pois a corrupção, numa leitura moralizante, naturalizada, “própria” do brasileiro, tornou-se nossa segunda pele: somos todos corruptos! É o jeitinho, rs. Notem que a demonização do Estado se dá apenas para o âmbito do desenvolvimento nacional, pois o subdesenvolvimento enriquece alguns. O Estado, apesar de demonizado, continua sendo “o balcão de negócios da burguesia”; a Dívida Pública fonte inesgotável de acumulação; a carga tributária regressiva brasileira uma “jabuticaba”, só aqui…
Da USP ao Buarque de Holanda e daí ao Raymundo Faoro, finalizando com FHC, o grande sociólogo brasileiro, um dos autores da “Teoria da Dependência” a qual enxerga a possibilidade de desenvolvimento a partir de uma submissão integrada, digamos assim. O que Jessé Souza (2018) faz é mostrar que essas “hierarquias morais” foram e são construídas para conservar, conservar o que está aí. Ao naturalizar a corrupção como doença endêmica, condenamos o país à dependência e ao subdesenvolvimento. As “elites do atraso” foram extremamente eficientes, no fim, pois, como diz Souza (2018), o segredo da perpetuação da dominação é o seu desconhecimento.
Ao final, o sociólogo faz uma relação entre neoliberalismo ou capitalismo financeiro. Interessante pensar como o neoliberalismo ‘casou’ com o pensamento hegemônico brasileiro ao mesmo tempo é interessante pensar nas transformações impostas à vida das pessoas por ele. O “eu” como o responsável por todas as vitórias, mas também fracassos, impede que a dominação e a exploração fiquem claras à população.
Como crítica ao livro, a parte final e a sua leitura das gestões Dilma, rasas e unidirecionais, ao contrário do restante do trabalho. Há interpretações muito melhores do que a de ‘A classe média no espelho’. Também me incomodou a importância dada pelo autor à “Revolução Cultural de Maio” de 1968, numa visão emancipadora, como se não tivesse significado despolitização. “A prosperidade e a privatização destruíram o que a pobreza e a coletividade na vida pública haviam construído’’(HOBSBAWM, 2017, p. 301). Apesar da tentativa louvável de propor uma nova “hierarquia moral” e apontar a necessidade de construirmos novos “mitos nacionais”, menos vira-latas, talvez a nossa principal discordância seja a crença na possibilidade de um projeto industrializante, nacionalista e emancipador dentro da ordem constituída. Jessé sabe que não temos burguesia para tanto como também sabe de nossa subordinação, como nação, a interesses estrangeiros, notadamente norte-americanos. Todavia, acredita na Classe Média como “fiel da balança”, notadamente a “massa” da Classe Média, como norteadora, como foi no passado, diz.
“Nesse sentido, a classe média e suas frações têm um poder inédito entre nós. Para onde elas se inclinarem, toda a sociedade, muito provavelmente, também vai se inclinar (…) Mas, por outro lado, a massa da classe média tem a possibilidade de ser, num país tão desigual e com classes populares tão perseguidas e desmobilizadas, um importante vetor de mudanças sociais, como foi no passado. O autoesclarecimento é um passo fundamental nesse desiderato.” (SOUZA, 2018, p. 165).
Eu gostaria muito de reler esse texto, daqui a alguns anos, e perceber que o Jessé estava certo, esse tempo todo… Ah, como eu gostaria de estar errado, Jessé!
(Meu 'fichamento' está disponível no link)
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