serraluis 02/04/2023
A obra Um discurso sobre as ciências é uma reelaboração de um discurso proferido no início das aulas na Universidade Coimbra no ano de 1985/86 com a proposta de fazer uma oposição à corrente positivista, propondo a visão de que o conhecimento científico é uma construção social e objetividade não implica em neutralidade. Assim, o texto divide-se em três partes principais, onde primeiro Santo vai apresentar o paradigma dominante e em seguida os motivos de sua crise e apresentar ou especular sobre um novo paradigma, ou a nova ordem emergente, com base nas condições teóricas e sociológicas que levaram essas mudanças tanto de crise como de um novo modelo de pensar a ciência.
O paradigma dominante, segundo Santos, constituiu-se a partir da revolução científica no século XVI sob o domínio das ciências naturais e apoiado num sistema totalitário onde se nega toda e qualquer forma de conhecimento que não seguisse seus padrões. Esse modelo de pensar a ciência tomou como base as leis da física até então estabelecidas, como o heliocentrismo de Copérnico, as leis das órbitas de Kepler, a queda dos corpos de Galileu e a ordem cósmica newtoniana, além dos discursos filosóficos de Descartes e Bacon.
A principal característica da ciência moderna é a invalidação sobre as evidências empíricas imediatas, pois são consideradas ilusórias. Assim, é feito uma cisão entre natureza e homem, privilegiando a natureza, pois para a ciência a natureza seria passiva de estudo e observação poderia ser descrita em forma de leis universalizáveis. O método para tanto baseou-se na observação sistemática e rigorosa dos fenômenos naturais. A matemática se torna a maior aliada científica e seu instrumento para as análises, que modificou até o conceito de conhecimento. Para a ciência agora conhecer passa a significar quantificar e aquilo que não pode ser quantificado se torna irrelevante.
A descoberta de que a natureza poderia ser descrita em leis, propõe a ideia de uma ordem e estabilidade, assim como a ideia de uma história cíclica em que os fenômenos são os mesmos em todos os tempos se repetindo continuamente. Baseando-se na mecânica de Newton o mundo físico é visto como uma máquina que pode ser determinada, que podem ser escritas por leis físicas e matemáticas, e permanecem assim eternamente.
O mecanicismo acabou impulsionando também a possibilidade dos estudos sociais, e começou-se a se pensar se seria possível formular leis sociais da mesma forma como foi possível para a natureza. Bacon, Vico e Montesquieu deram grandes contribuições para esse debate. Bacon acreditava que a capacidade da natureza humana de se moldar e se aperfeiçoar conforme as condições sociais, jurídicas e políticas seria possível determinar. Para Vico era possível prever os resultados das ações da coletividade humana, pois elas já eram determinadas. E Montesquieu foi um dos grandes revolucionários ao estabelecer uma relação entre as leis positivas e as leis determinadas pela natureza. Esses postulados são aprofundados durante o século XVIII, criando as condições para se pensar as ciências sociais no século XIX.
As formulações sobre as ciências como o racionalismo em Descartes e o empirismo de Bacon condensou-se no positivismo oitocentista e dele sucedeu-se duas possíveis forma de conhecimento, as ciências formais com a lógica e a matemática e as ciências empírica mecanicista com a ciência da natureza e a ciência social. Diferente do seu início, o modelo mecanicista passou-se a ser abordado de maneira diferente, e também desdobrando-se em duas vertentes, a primeira vertente buscou aplicar ao estudo da sociedade os princípios epistemológicos e metodológicos da ciência moderna do século XVI, o segundo modelo busca reivindicar para as ciências sociais um estatuto próprio, e essa concepção deu início ao que Santos define como a crise do paradigma dominante e o passo para a transição do paradigma emergente. Entretanto, a crise também foi resultado de diversas condições sociais e teóricas.
No campo teórico Einstein foi um dos grandes nomes, pois ele relativizou as leis de Newton que era um dos pilares do método científico que se assentava. Além disso, Bohr e Heisenberg demonstraram “que não é possível observar ou medir um objeto sem interferir nele” (SANTOS, 2008, p.43). Essas questões põem em perspectiva a questão da neutralidade e distância entre pesquisador e objeto tão defendida e colocadas como condições para se fazer ciência.
Surge então uma nova forma de pensar a matéria e a natureza, ou seja, o objeto, diferente do período moderno, fazer ciência agora deve considerar a história e os fenômenos devem ser entendidos como imprevisíveis e desordenados. Do ponto de vista sociológico, esse novo modelo traz reflexões sobre os próprios cientistas e suas pesquisas, agora considerando seus motivos e interesses e a problematização sobre suas práticas. Passou-se a analisar a natureza através das condições sociais e culturais a partir dos modelos organizacionais da investigação científica. E o que antes seriam leis universais agora passaram a ser definidas como possibilidades provisórias passíveis de contestação e mudanças .
Dessas mudanças, o autor propõe uma especulação com base nessa perspectiva da crise, via um conjunto de teses e suas justificações. A primeira delas é que não tem mais sentido e utilidade a proposta de uma separação entre ciência e natureza, pois desde Einstein a física e a biologia já vinham postulando que os fenômenos a serem pesquisados ou como acontecem sofrem interferência ou precisam da interferência, como provou Heisenberg e Bohr. Outro ponto defendido é que todo conhecimento é local e total, enquanto o conhecimento procura uma universalização eles partem de contextos locais específicos, partindo dos cientistas e seus interesses.
Além disso, todo conhecimento é autoconhecimento, o novo paradigma pressupõe que a ciência tem um caráter autobibliográfico e autorreferencial, o conhecimento não separa o cientista do seu objeto, eles coexistem e se correspondem em uma relação íntima. E por fim, todo conhecimento científico deve constitui-se em senso comum, a ciência moderna de maneira geral produzia conhecimento e desconhecimento, nesse viés para a ciência pós-moderna o conhecimento precisa ser traduzido, transformado e acessível, ou seja, servir a sociedade.
Dado o exposto, a obra de Santos nos leva a uma trajetória histórica dos processos e do próprio entendimento do fazer cientifico. Acredito assim como ele que estamos vivendo ainda nesse paradigma emergente, mas que ainda falta muito tempo para que ocorra essa inversão completa ou o abandono do paradigma dominante e que talvez nem seja possível essa cisão completa. Ademais, a obra nos faz pensar sobre o nosso papel como pesquisador na atualidade e refletir se queremos apenas produzir por produzir ou se queremos realmente buscar ou contribuir com nossa realidade.