spoiler visualizarThiago Barbosa Santos 01/01/2020
Doadores especiais
Autor dos mais celebrados da literatura contemporânea, Kazuo Ishiguro nasceu no Japão e ainda criança foi morar na Inglaterra. Escreve na língua inglesa. Foi Nobel de Literatura em 2017 e alguns de seus livros ganharam adaptações de grande sucesso no cinema, como ?Não me abandone jamais?. A história é uma ficção científica comovente, em que clones são criados para doar órgãos quando adultos.
O livro é narrado em primeira pessoa pela personagem Kathy. Ela e centenas de outras crianças são criadas em um internato chamado Hailsham. Desde pequenos, eles são doutrinados para compreender qual o destino deles. O que impressiona é que todos são absolutamente conformados com essa realidade e, em momento algum, se rebelam ou tentam um destino diferente.
Ao longo do texto, vamos descobrindo com mais detalhes como funciona todo aquele universo. Existem vários centros que têm como missão preparar essas crianças para o futuro como doadoras. Porém, Hailsham é um lugar especial, onde os educadores conseguem dar uma infância mais humana para aqueles jovens, tanto que todos eles guardam boas lembranças da localidade quando, na maioridade, vão embora.
O livro é dividido em três partes, na primeira, Kathy narra a vida em Hailsham, na seguinte, a saída de lá e a vivência de uma fase transitória no Casario, onde ela e mais alguns amigos próximos foram passar um tempo. Na última, a personagem narra mais detalhadamente o processo como cuidador (que todos vivenciam até se tornarem efetivamente doadores) e doador.
Kathy teve uma infância feliz em Hailsham. Viveu mais próxima de duas crianças, o Tommy, um garoto que tinha sérios problemas emocionais e dificuldades de aprendizagem, e Ruth, sua melhor amiga. A narradora sempre pareceu ser a mais madura, ajudou bastante Tommy a se desenvolver. Tanto que o garoto logo estreitou laços com ela. Mas quando se pensou que os dois ficariam juntos, quem se tornou namorada dele foi Ruth. Kathy era a amiga mais próxima do casal e até ajudava a reaproximá-los quando terminavam.
A relação entre Kathy e Ruth era meio instável. O temperamento infantil e o ar de superioridade da segunda sempre foram motivos para alguns contratempos entre elas. Quando completaram a maioridade, foram juntos para o Casario, conheceram doadores de outros centros, amadureceram e vivenciaram diversas outras descobertas e experiências.
Esses jovens foram clonados de pessoas que tinham pouca valia na sociedade. Jamais conseguiam ver os seus ?correspondentes?. Nasceram para ser descartáveis, para doar seus órgãos até não resistirem mais e ?concluírem?, como chamavam. É bastante triste notar a falta de perspectiva deles, e como encaram com naturalidade todo aquele processo. Eles até sonham, mas logo lembram que o futuro não é lá muito promissor. Parecem não se enxergar muito como humanos normais, foram condicionados a isso.
Pouco antes de sair do Casario, Kathy teve um desentendimento com Ruth e Tommy. Ela saiu de lá para ser cuidadora, ou seja, cuidar de quem já se transformou em doador. Todos passam por essa fase. Mas pela qualidade dos serviços, a personagem ficou anos e anos na função. O tempo passou e um dia ela teve a oportunidade de reencontrar a amiga Ruth, que estava se recuperando da segunda doação, estava bastante debilitada, conseguiu se tornar a cuidadora dela. As duas acertaram os ponteiros, depois reencontraram também Tommy, que vinha da terceira doação. Antes de morrer, Ruth pediu para que Kathy se tornasse cuidadora de Tommy e que os dois buscassem recuperar o tempo perdido, ela mesma confessa que o certo era ambos terem formado um casal.
Kathy e Tommy se tornaram parceiros no período em que a moça cuidou dele, efetivamente se relacionaram, mas sentiam que aquilo não iria perdurar, logo viria mais uma doação dele (a que inevitavelmente o levaria), em breve, ela também passaria a ser doadora. Contudo, existia uma ponta de esperança, desde muito havia um boato de que, se um casal conseguisse realmente provar que era apaixonado, conseguiria um adiamento de três ou quatro anos, uma oportunidade e tanto para reparar o tempo perdido. Os dois foram atrás disso e reencontraram duas administradoras de Hailsham que poderiam fazer isso. Foi uma reunião nostálgica e bastante triste, em que foram desiludidos, esse adiamento era inexistente, impossível. Lá também ficaram sabendo de toda a história do internato, de como os administradores lutavam para dar uma infância menos traumática para aqueles clones, e que Hailsham simplesmente não existem mais, ruiu por falta de apoio.
Desiludido, Tommy pediu para que Kathy deixasse de ser sua cuidadora, uma forma de abreviar aquela inevitável despedida. Poucos meses depois, fez mais uma doação e ?concluiu?. O livro encerra de forma muito tocante, Kathy recebe o comunicado de que fará sua primeira doação em alguns meses, enquanto resgata da memória alguns momentos marcantes da sua vida.
O título do livro é a música predileta de Kathy, que ela ouvia ainda pequena. ?Não me abandone jamais? propõe uma reflexão interessante sobre os limites éticos da ciência. Um horror que foi normalizado pela comunidade científica e por toda uma sociedade.