Yuri Ferreira 05/03/2021
O peso do luto e a força da comida como relação.
Eu não sei lidar com a morte. Ao mesmo tempo, é o assunto que eu menos paro pra pensar sobre. Talvez por trauma, por não saber lidar, ou por desesperança. A verdade é que sou tão ignorante quanto uma formiga, se é que podemos julgá-la assim. Nós temos consciência do nosso futuro, do que há por vir, mas, ainda assim, apesar do desespero e das dificuldade em lidar com a morte, conseguimos viver. O problema todo está no pós-morte, naquilo que é deixado para trás, nas lembranças e sentimentos guardados no coração, naqueles que amamos. Eu sei lidar com a morte, não sei lidar com o luto.
Nunca liguei muito para comidas e cozinhas. Comer funcionava mais como necessidade, do que qualquer outra coisa. Fiquei doente enquanto lia e talvez isso tenha influenciado algo, mas agora enxergo diferente. Vivia com a boca cega, meio-cega. Se um dia enxerguei carinho e afeto no ato de comer, tenho certeza que a sensação foi a mesma que a da etapa final do luto: um aperto forte, apreciando o momento, reconhecendo o passado. Seres delicados exigem abordagens diferentes; mas, afinal, não somos todos nós delicados ao enfrentar o medo?
Em "Kitchen", Banana Yoshimoto me fez olhar para dentro. Sonhar com cozinhas perfeitas, com amores passados, presentes, futuros; com luto. Amor não é sempre grandeza, também se encontra nas coisas simples; no cotidiano, nos menores presentes da vida, em conversas que apenas os olhos importam... em comer. "Mostrar ao coração um arco-íris" apenas com sorrisos e entendimento mútuo. Limpar uma cozinha especial ao lado de alguém importante. Enfrentar o luto com uma refeição, afinal, essencialmente, comer é viver.
Lembrei de todas as vezes que cozinhei algo, que compartilhei um lanche com alguém que gosto e, por incrível que pareça, todos esses momentos parecem flutuar. Lembro deles, devagar, anestesiados, acontecendo com calma, até se encaixarem nos moldes que definem o que determinado momento é. Tudo parece tão vivo e tocante, a cozinha se torna o lugar mais confortável e querido do mundo, capaz de me abraçar e dizer palavras serenas; eu nunca tinha percebido a intensidade que a comida podia ter na minha vida, em como isso é uma relação entre eu e o mundo, mas, mais ainda, uma espécie de demonstrar afeto.
Sufocado de problemas, cansado do dia a dia e das repetições do que consumo, encontrar um livro tão precioso como esse mexe nas entranhas do que me faz vivo. É olhar para o mesmo problema do outro lado da sala, e então do outro lado de novo, e dessa vez de cabeça pra baixo e assim por diante.
São situações muito específicas. Solitárias. As que nos distanciam do mundo e de nós mesmos. Não é à toa que os contos sempre começam após a morte, no luto de cada personagem. Lidar com o "estar preso eternamente na solidão (mesmo ao redor de amor)" exige mais força do que perceber a própria morte acontecer; é estar em contato com a parte crua do ser humano, do que ignoramos e do que sempre existiu. Yoshimoto tem um olhar perspicaz e cheio de alma, e "Kitchen" seria apenas um livro sobre cozinha se não fosse por isso.
Tem algo que venho enrolando para escrever, mas é inevitável, uma hora ou outra precisamos falar sobre lidar com a perda, com o luto. Neste exato momento escrevo em situação de total desesperança. Não é a perda de alguém próximo que me faz temer a vida, mas sim a perda de mais de 1500 pessoas diariamente para a estupidez de um governo genocida. São pesos diferentes, situações diferentes, mas, ainda, pesos. Estar cercado pela morte traz um tipo diferente de cansaço.
Aceitar a beleza do que é nosso. Amar, pois, sem amor, esquecemos dos que partiram. É o máximo que podemos fazer. Com ou sem ajuda; sozinhos ou não. Juntos, nós espiamos dentro do caldeirão do inferno. Sem segurar as mãos, mas juntos. Ninguém precisa ser explícito para amar. Vivemos. Pelo os que se foram. Pelo os que permaneceram.