Dani do Book Galaxy 22/12/2019Não aguento mais me decepcionar com livros sobre sereias!Senta, que lá vem textão!
Quando a editora DarkSide anunciou a publicação de “A Pequena Sereia & O Reino das Ilusões“, meu coração quase saiu pela boca. Além de trazer um trabalho gráfico deslumbrante, digno de um livro de contos de fadas, o livro também prometia uma releitura do conto da Pequena Sereia de Hans Christian Andersen sob um viés feminista, propondo uma visão crítica e chocante das atitudes machistas perpetuadas através dos anos em nossa sociedade.
Bom, não quero ser maldosa, mas acho que o trabalho gráfico do livro foi, de fato, a única coisa boa no livro de Louise O’Neill. E já vou dizer o porquê.
[O Reino dos Mares é assustador]
Somos introduzidos ao Reino dos Mares por Gaia, nossa pequena sereia e protagonista da história. Prestes a completar 15 anos, Gaia conta, sob seu ponto de vista, como é a sua vida sendo a filha mais nova do grande Rei dos Mares.
O Reino dos Mares é extremamente machista e autoritário. Vivendo sob uma sociedade patriarcal, as sereias são extremamente reprimidas, obsequiosas e submissas aos tritões; de certa forma, o Reino dos Mares não deixa nada a desejar ao pior das histórias medievais em que as mulheres são estupradas, controladas e tratadas como inferiores.
E, dominando esse reino soturno e opressor, temos o Rei dos Mares, pai de Gaia. Eis um personagem que causa ojeriza logo à primeira vista; preterindo suas filhas mais velhas em favor de Gaia, que é a sereia mais jovem e mais bela dentre suas irmãs, o Rei instiga a ditadura da magreza, negocia o casamento de suas filhas, exige um comportamento extremamente submisso de todas elas e governa os mares da mesma forma opressora e nojenta.
[Expectativas afogadas em água salgada]
Vivendo em um lugar desses, não é de se estranhar que Gaia sentisse uma necessidade desesperadora de escapar. Escapar não apenas do ambiente medonho em que vivia, mas de um destino igualmente terrível, fadado a um casamento com um tritão violento que prometia lhe infringir os mesmos abusos que seu próprio pai lhe deu durante a vida toda.
A forma como a Pequena Sereia descreve essa ânsia de escapar e seu desespero me trouxe um sentimento constante de sufocamento durante a leitura. A cada página, era como se eu estivesse debaixo d’água com Gaia, a água salgada de seu maravilhoso cativeiro – o oceano – entrando pelos meus pulmões e me afogando também.
Achei essa interpretação do fundo do mar uma releitura impactante, pois a autora levantou várias questões relevantes – como a competição feminina perpetuada pelo modelo de sociedade machista e a inexistência de voz ativa das mulheres.
Dessa forma, fica subentendido que o ambiente machista e opressor seria deixado para trás no momento em que Gaia procura a Bruxa do Mar – Ceto – para lhe ajudar com o que ela imaginou que fosse sua única saída: se tornar humana. Naturalmente, comecei a criar expectativas sobre a revolução prometida na sinopse e que Gaia iria conquistar com suas recém-criadas pernas humanas.
E foi a partir daí que comecei a me decepcionar para valer.
[O problema da escrita em primeira pessoa]
Um dos maiores problemas que identifiquei durante a leitura foi a escrita em primeira pessoa no tempo verbal do presente.
“Nossa, Daniella, mas você vai encrencar com isso?”
SIM. Vou encrencar com isso. Muitas, vezes a escrita em primeira pessoa é uma saída extremamente fácil para o autor descrever cenários, ambientes e, principalmente, os pensamentos do narrador-personagem.
Entendo que, no caso deste livro, é mesmo interessante conhecer a história sob o ponto de vista da Pequena Sereia. Afinal, o modo como Gaia conta alguns detalhes do que sofre em seu reino do Mar é extremamente impactante. Porém…
Temos um problema gritante de inconsistência na narrativa, e isso foi causado, sobretudo, pela escrita em primeira pessoa. Pode parecer besteira, mas essas inconsistências quebram o fluxo narrativo e me incomodam. 🤷♀️
Um exemplo é o emprego de termos como “corte de cabelo Chanel” para a sereia descrever cabelos curtos. Até então, ela não sabia absolutamente nada sobre o reino humano e, portanto, não tinha nem como saber o que é um corte de cabelo Chanel.
Outras inconsistências que pesquei várias vezes: para se tornar humana, a sereia tem a língua cortada pela Bruxa do Mar. Mas, em várias cenas, ela descreve o gosto de vários alimentos… teoricamente, você não precisaria de uma língua para sentir gosto das coisas?
Sem língua, Gaia também estava muda, correto? Mas a autora usou algumas vezes expressões como “murmuro” e “xingo em voz baixa” e, bem… mesmo que seja em voz baixa, alguém sem língua não pode xingar de nenhuma maneira.
Mas essas pequenas coisas são o de menos, sinceramente, comparando com outras coisas que me irritaram nesse livro.
[Personagens pouco profundos]
Além dos problemas que citei acima, a escrita em primeira pessoa trouxe uma descrição extremamente pobre das demais personagens. Sem profundidade, até a Bruxa do Mar – uma das personagens sobre quem gostaria de saber mais – só ganhou alguns parágrafos no fim do livro para que a conhecêssemos melhor.
O que foi uma pena, porque me interessei por essa possível história de Ceto e do passado do Rei dos Mares. Mas a autora só nos deu um gostinho do que poderia ter sido.
[Todos os homens são babacas]
Dito isso, a autora fez questão de mostrar, através da história, que todos os homens são babacas. Se os tritões do reino dos Mares eram machistas, abusivos, violentos e estúpidos, os homens da superfície não se saíram muito melhores.
Assim como no conto de Andersen, Gaia vai à superfície para conquistar o homem pelo qual se apaixonou à primeira vista em sua visita fora das águas marinhas, mas também possui uma segunda motivação para se aventurar fora das águas: ela deseja saber mais sobre sua mãe, que foi supostamente sequestrada e morta pelos humanos.
Corajosa, Gaia então procura Ceto para ajudá-la nessa empreitada que, até então, parece impossível para uma sereia submissa e inexperiente como ela.
Porém, tal acordo com a Bruxa do Mar foi muito mais drástico do que os das demais adaptações que conhecemos, exigindo da Pequena Sereia muito mais do que apenas sua voz. De fato, dá bastante agonia de acompanhar Gaia durante sua transição de sereia para uma humana muda e perdida na superfície.
Além de acompanhar toda a agonia de Gaia, sentimos também junto com ela sua decepção ao constatar que seu objeto de afeição – Oliver – é um riquinho mimado de 21 anos que se comporta como um perfeito imbecil de 14.
Acho que há sim uma lição nessa descrição de Oliver como um babaca de primeira, mas o que me frustrou é que a autora não parou por aí. Todos os outros homens que aparecem no livro são assim também.
Sendo justa, um personagem aleatório aparece em algum momento para equilibrar isso, mas ele só está sendo uma pessoa decente e completamente normal. Mas, comparado à escória masculina que são as outras personagens, de fato, esse rapaz parece um anjo feminista.
Tudo bem, eu até entendo que a intenção da autora é chocar mesmo e mostrar como as mulheres são subjugadas e oprimidas não importa onde estejam – seja no mar ou fora dele. Mas achei completamente surreal o modo como ela põe as coisas no livro. Tem bastante ódio gratuito aí, e isso me incomoda, não interessa quem está escrevendo.
[Pequena Sereia totalmente sem sal]
Doi muito em meu coração dizer que a personagem principal me decepcionou, mas, infelizmente, foi o que aconteceu.
É perfeitamente compreensível que Gaia seja uma personagem passiva e medrosa, amedrontada pelos anos em que passou sendo criada daquela forma abusiva e opressora pelo Rei dos Mares.
Entretanto, uma vez fora das águas, eu esperava uma transformação. Não uma “revolução” propriamente dita (como nos é prometido na sinopse do livro), mas algo que se estendesse além da troca de sua bela cauda por pernas humanas.
Em questão de desenvolvimento de personagens, senti que a autora tentou dar um sentido a todo o esforço de Gaia apenas nos últimos parágrafos, literalmente. Foi algo apressado, que não me convenceu, e me fez lamentar o potencial de Gaia e seu futuro como “sereia reformada”.
[Chocar para convencer]
O que me incomodou bastante também no livro foi o modo drástico, chocante e extremista com que a autora descreve praticamente tudo o que acontece. A todo momento, temos dor, sangue, expressões como “Estilhaçou a espinha dela” e “Pedaços de carne sangrenta”.
O livro é curto e a história em si também é curta, mas a autora conseguiu deixá-la extremamente arrastada e sofrida, para culminar em uma redenção que não convence.
Na realidade, senti que as últimas páginas do livro foram escritas de forma forçada, quase às pressas. É como se a autora estivesse tentando compensar toda a apatia, fragilidade e personalidade insossa da personagem em um ápice que foi extremamente mal escrito e trouxe uma mensagem bem negativa.
[Um desserviço para o feminismo]
Por fim, uma das mensagens complemente equivocadas transmitidas no ápice do livro é que se combate o machismo se igualando a ele. Ou seja, sendo preconceituoso e odiando os homens tanto quanto os homens humilham e maltratam as mulheres.
Achei essa mensagem muito negativa e potencialmente problemática, visto que o livro se coloca como feminista, mas espalha essa mensagem de que ódio se combate com mais ódio.
O final da história de Gaia, além de apressado e mal desenvolvido, foi construído em cima de uma ideia obsoleta e antiquada de que precisamos conquistar nossos direitos por bem ou por mal, pagando na mesma moeda.
Veredito final: 2 ⭐️
A historia da Pequena Sereia na interpretação de Louise O’Neill poderia ter sido um hino feminista, dando voz a tantas mulheres que, assim como Gaia, se veem caladas e impotentes frente a seu destino.
Porém, a execução deixou muito a desejar, desde a construção de personagens e ambientação da história até a técnica de escrita da autora.
Classifiquei o livro com 2 estrelas: uma para a edição impecável da DarkSide, e outra para as ideias boas que ficaram ali adormecidas, mas jamais desenvolvidas.
site:
https://bookgalaxy.com.br/a-pequena-sereia-o-reino-das-ilusoes-de-louise-oneill-resenha/