lullabyrainbow 12/05/2022
O que é intrínseco ao ser humano sob um olhar lindamente horrível
Junji-Ito possui um talento extremamente poético e perigoso que é o de explorar o que há de pior na humanidade a partir de metáforas e analogias cuidadosamente planejadas. Nenhum dos seus textos é superficial e em "Smashed" o leitor tem a oportunidade de ter contato com essa mágica com que o autor constrói as suas histórias, atrelando temas delicados, sensíveis e relevantes para a humanidade a partir do horror.
Para quem teve contato com outras obras do autor, como em "Fragmentos de Horror", já conhece a capacidade de Junji-Ito abordar assuntos presentes no cotidiano humano, como depressão, luto e culpa, por uma perspectiva do terror, afinal, esses são os elementos mais assustadores para o mundo pós-moderno que vivemos, onde a população está cada dia mais adoecida, seja com transtornos mentais ou uma ansiedade latente, adquirida pelas mais diversas razões, ou por uma comunidade que tenta se reestabelecer após uma pandemia mundial, que vitimou milhões. É comum encontrar famílias despedaçadas, que ainda não conseguiram superar o luto, ou então famílias adoecidas, que por diversas razões vão se perdendo nas ninharias do cotidiano ou nas magnetudes da vida adulta.
Por razões pessoais, o primeiro conto, "Bloodsucking darkness" é um dos mais tocantes da antologia. Uma garota, que por ser desprezada por seu crush, se vê em um caleidoscópio macabro quando decide emagrecer, seja por bem, seja por mal. Ela desenvolve bulimia, que é um distúrbio alimentar extremamente comum para essa geração dos anos 1990 e 2000, que foram obrigadas a se adequar ao padrão das heroin chics, a magreza extrema e glamourizada. Junji-Ito não se prende apenas ao distúrbio, é claro. Ele usa a doença como um artíficio, para apresentar as consequências funestas de tal busca doentia pelo padrão estético. Esse padrão segue em todos os contos da antologia, afinal, qual a consequência dos nossos atos?
Um exemplo claro disso é "Death Row Doorbell", em que apresenta a condição mental e física de uma família após serem vítimas de um ataque e a perturbadora busca pela redenção, por parte do atacante. "Death Row" fala sobre o perdão, assim como fala sobre como o luto alongado, e o ressentimento que provém de mortes violentas e não-naturais, podem continuar a destruir famílias. A materialização do assassino no seio familiar, estando ele vivo e, consequentemente, impossibilitado de ser descrito como um fantasma, é uma prova de que "Death Row" não fala sobre o assassinato em si, mas sobre as consequências de não se permitir superar o luto.
Como menção honrosa, "Earthbound" é, provavelmente, o conto com o enredo mais genial da antologia. A forma com que Junj-Ito explora a culpa incapacitante, que vive no subconsciente das pessoas pelas mais diversas razões, é de uma delicadeza suprema. Em um determinado dia, algumas pessoas aparecem em poses estranhas nos lugares mais remotos do Japão. Os transeuntes que encontram-nas nas ruas especulam se é algum tipo de performance. Porém, elas estão presas nessa posição constrangedora, fixadas em lugares aleatórios, e não podem mover-se nem mesmo para comer. Ao longo do conto descobrimos que essas pessoas estão presas nesses lugares por razões específicas, ligadas à culpa. Quantas pessoas não guardam segredos terríveis dentro de si, que escondem muitas vezes de si próprias, que preferem não refletir e apenas viver como se fossem isentas de culpa? E se todos nós, com os nossos segredos macabros, fôssemos crucificados em praça pública, tendo a nossa vergonha exposta para não apenas a nossa família, mas para todo o nosso país? É mesmo possível ocultar um segredo tão perturbador por toda uma vida? São questões que "Earthbound" trazem para o leitor e que não me vejo capaz de responder.
"Smashed" não é uma coletânea de horror: o livro é muito mais do que isso. "Smashed" é um estudo minucioso das chagas da nossa sociedade, sejam elas a busca incansável pela beleza ou pelo sucesso, um luto que nos aprisiona pois não conseguimos superar, um ressentimento que nos limita, pois apenas o perdão liberta, a inveja, a saudade, a ânsia inesgotável por mais... Um termo tão comum na última década, o famigerado relacionamento abusivo e suas consequências. Enfim... Se você for ler "Smashed" apenas pelas imagens escatológicas e lindas que Junji-ito desenha, é melhor pensar bem. Provavelmente você sairá transformado - abalado até os ossos e agonizantemente chocado, mas, ainda assim, transformado em seu âmago.