spoiler visualizarPriscila.Araujo 12/08/2018
Seria Lobato racista?
Tido por muitos como um escritor/homem racista decidi, por mim mesma, verificar se a fama era verdadeira. Indo à biblioteca da escola onde trabalho, procurei algum livro de Monteiro Lobato. Decidi, então, por essa seleção de contos, porque o título "Negrinha" chamou-me a atenção. Em 2013 fiz, na faculdade de letras-espanhol, que eu não concluí, uma análise dessa narração, que leva o mesmo nome do livro.
Ao ir embora, entrei no metrô e chorei, chorei muito como da primeira vez que o li.
Os contos tratam de questões que envolve a pobreza, o preconceito - tanto de cor de pele, quanto de classe social - a avareza, a preguiça, a má-índole e a maldade humana.
Alguns trechos do conto "Negrinha", para quem nunca leu:
"Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados. Nascera na senzala de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera pelos cantos escuros da cozinha, sobre a velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, porque a patroa não gostava de criança. "
"— Quem é a peste que está chorando aí?
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa
abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo lhe
em caminho beliscões de desespero.
— Cale a boca, diabo!
No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio,
desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...
Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã
aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia
a idéia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo
ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase
não andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a
boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta."
"Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha,
diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta,
sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos
com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na
berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que
achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não
teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste... "
"O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa
todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo."
"— Traga um ovo.
Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta,
gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos
contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula
alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora chamou:
— Venha cá!
Negrinha aproximou-se.
— Abra a boca!
Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma
colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de
dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou
surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. "
"Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois
anjos do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos.
Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferir
contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.
Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo
mudado — e findo o seu inferno — e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha
levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.
Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e
nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se
enxerga”?
Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral —sofrimento
novo que se vinha acrescer aos já conhecidos — a triste criança encorujou-se no
cantinho de sempre. "
"Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma.
Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava,
afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de
ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se
sentia! Se vibrava!
Assim foi — e essa consciência a matou. "
"Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais,
entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas
louras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa
farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça — abraçada,
rodopiada."
"E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na
memória das meninas ricas.
— “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”
Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.
— “Como era boa para um cocre!..."
Quanto aos outros contos, um em especial, dos últimos que devorei, tem por título " Quero ajudar o Brasil". Trata-se de um senhor que juntou todas as suas economias para comprar ações da Companhia de Petróleos do Brasil. Alguns trechos, soaram-me bem estranhas. Vejamos:
"De que brancura deslumbrante nos saíra aquele negro? E como são negros certos ministros brancos."
"Tínhamos de nos manter à altura daquele negro."
Não sou nenhuma crítica literária. Esse foi o primeiro livro que li e não posso desferir adjetivos ao autor sem ler mais. Não obstante, fiquei apaixonada pela obra desse autor. Não quero parar por aqui. Lerei mais livros dele, com certeza.