mpettrus 29/08/2022
A Máquina Burocrática do Mal
A essencial obra para compreender a ideia de ?banalidade do mal? proposta por Hannah Arendt tratando do julgamento em uma corte de Jerusalém de Adolf Eichmann, um funcionário nazista que articulou a burocracia da solução final, o genocídio judeu, é relatado de maneira primorosa e contundente nesse livro ?Eichmann em Jerusalém ? Um Relato Sobre a Banalidade do Mal?.
?A literatura da Arendt não é das mais fáceis de compreender, por ter uma abordagem profunda de conceitos para nos fazer despertar reflexões relevantes, e sem qualquer conhecimento prévio dos pensamentos da autora, a leitura tornar-se-á extremamente desafiadora. A teoria da banalidade do mal é tida como um desafio ameaçador a toda e qualquer sociedade ou cultura, justamente porque o homem precisa conservar sua consciência e refletir sobre suas ações, haja vista, que se esquecendo dessa primordial característica a humanidade será afetada colocando em risco toda a coletividade humana.
?Em 1961, Hannah Arendt (filósofa alemã de origem Judaica) viaja para Jerusalém para cobrir o julgamento de Adolf Eichmann, nazista alemão, que, com o fim da segunda guerra mundial, foge para Argentina, mas é pego pelo Mossad (serviço secreto israelense), acaba sendo condenado à morte por enforcamento, em 1962, por sua função de organizar e mandar judeus aos campos de concentração, o que ficou conhecido como ?solução final?.
Arendt acompanhou o julgamento de Eichmann e relatou o episódio em vários capítulos desse livro. Os capítulos nos dão um panorama geral sobre a questão do tratamento dado aos judeus durante o desenrolar da guerra. Vejamos: I. A Casa da Justiça (o Tribunal onde se realizou o julgamento); II. O acusado; III. Um perito na questão judaica; IV. A primeira solução: expulsão (Neste e nos próximos capítulos são mostrados os passos sucessivos do projeto de Hitler de tornar a Europa livre dos judeus - Europa Judesrein); V. A segunda solução: concentração; VI. A solução final: assassinato; VII. A Conferência de Wannsee, ou Pôncio Pilatos; VIII. Deveres de um cidadão respeitador das leis (chamo especial atenção para este capítulo - a obediência perante a razão emancipadora de Kant, ou a obediência "cadavérica" ao dever. Eichmann confessou ter lido Kant); IX. Deportações do Reich: Alemanha, Áustria e o Protetorado (Neste e nos próximos capítulos são mostrados os diferentes momentos no trato com os judeus em seus respectivos países - além de tudo - grandes aulas de história); X. Deportações da Europa Ocidental - França, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Itália; XI. Deportações dos Bálcãs - Iugoslávia, Bulgária, Grécia, Romênia; XII. Deportações da Europa Central - Hungria e Eslováquia; XIII. Os centros de extermínio no Leste; XIV. Provas e testemunhas; XV. Julgamento, apelação e execução.
Há, na obra aqui comentada, cenas reais do julgamento, deixando a narrativa com aspecto de documentário, e conferindo mais verossimilhança à obra. Deve-se considerar que o fato da autora usar imagens reais de Eichmann reitera a sua tese, mostrando que, no seu pensamento, Eichmann não é um monstro, mas um ser humano comum, não um louco, maligno e cruel como se esperava que fosse.
Evidencia-se que, no decorrer da segunda guerra mundial, a exacerbada violência contra um povo estava prevista em textos legislativos, ou seja, a desumanidade do partido nazista foi respaldada pela esfera normativa. E, dessa maneira, legitima-se o direito positivo sem juízo de valores. Em razão dessas crenças e convicções, o direito imposto perdeu a ética e os seus princípios. E foi por esse mesmo motivo que os judeus sentiram em suas peles a ineficácia desse direito em protegê-los, visto que este havia se tornado aliado dos alemães e o pior inimigo de seu povo.
?No ponto central da obra Eichmann em Jerusalém ? um relato sobre a banalidade do mal está um processo judicial; entretanto, figura, como personagem principal, um homem, de carne e osso, terrivelmente assustador em sua normalidade. A compreensão de Hannah Arendt acerca do julgamento extrapolou as matérias de caráter jurídico, político e histórico, para estabelecer um juízo sobre o comportamento de um ser humano. Insere-se, portanto, na tradição da filosofia moral ? assim, estabelece-se o diálogo com Kant. Diante da insuficiência do conceito kantiano para explicar a modalidade do mal praticada na experiência totalitária do Nazismo, a filósofa cunha a expressão banalidade do mal.
? Hannah Arendt e a acusação esperavam encontrar um monstro, um homem perverso, típico exemplo da malignidade humana. Ao encontrar um ser absolutamente comum, paradigma do ?homem massa?, com notória falta de profundidade, a questão essencial sofreu um deslocamento; foi necessário compreender como um Estado produziu agentes que funcionaram como reprodutores fiéis de seus objetivos.
A máquina burocrática do mal revela que o mal é a ausência de pensamento, vinculando-se à capacidade humana de discernir o bem do mal. Eichmann respondeu por seus atos mecanizados, por suas más ações diante de um sistema capaz de tornar uma simples conduta repetitiva em completa alienação. A banalidade do mal é quando não mais se percebe o próprio agir, não consegue se colocar no lugar do outro e ter a dimensão do que representa o próprio ato. Eichmann deixou claro em seus depoimentos que era apenas um funcionário público honesto e obediente, cumpridor de metas e da lei, a cada dia de julgamento que se passava, tornava-se mais ?arrivista de pouca inteligência, uma nulidade pronta a obedecer a qualquer voz imperativa, um funcionário incapaz de discriminação moral ? em suma, um homem sem consistência própria, em que os clichês e eufemismos burocráticos faziam às vezes do caráter?.
A meta do totalitarismo moderno, ? e, consequentemente, do regime nazista do qual Eichmann fazia parte ?, para a realização plena de sua ideologia, na concepção da autora, é tornar-se um sistema em que os homens fossem supérfluos. Se aceita a premissa kantiana de que o homem é um fim em si mesmo, fala-se em instrumentação quando este deixa de ser um fim e passa a ser um meio. Uma vez meio, perde o ser humano sua ?humanidade?, e perde-se também o valor da vida humana, que deixa de ser ?necessária e essencial, para ser inconseqüente e banal?.
? A constatação de Hannah Arendt de que Adolf Eichmann agiu de forma a colaborar com o massacre de seis milhões de judeus, sem que isso fosse atribuído nem as suas convicções ideológicas, nem a motivações diabólicas, foi essencial para sua conclusão derradeira. A principal lição extraída desse célebre julgamento, a partir da análise do ex-oficial ? condenado à pena de morte pela corte de Jerusalém ?, foi o da banalidade do mal.