@fabio_entre.livros 01/02/2020
Palavras do Rei
“Algo sinistro vem por aí”, de Ray Bradbury, desafia qualquer categorização clara e de fácil análise. Esse romance, publicado pela primeira vez em 1962, não recebeu imediatamente a aprovação da crítica tanto de ficção científica quanto de fantasia e teve 12 reedições desde a sua primeira publicação. Por tudo isso, não foi o livro de maior sucesso de Bradbury nem o mais conhecido; “As crônicas marcianas”, “Fahrenheit 451” e “Licor de dente-de-leão” tiveram provavelmente uma vendagem superior à dele, e são, com certeza, mais conhecidos pelo público leitor em geral. No entanto, acredito que “Algo sinistro vem por aí”, uma história poeticamente sombria, que se passa na comunidade meio real e meio mítica de Green Town, Illinois, é talvez o melhor trabalho de Bradbury. Não é um livro perfeito; em alguns momentos, Bradbury peca por ser prolixo demais, fato que caracterizou grande parte de seu trabalho durante os anos 1970. Algumas partes são autoimitativas e embaraçosamente grosseiras. Mas isso é uma pequena parcela do trabalho total; na maior parte das vezes, Bradbury conduz sua história com intensidade, beleza e garra.
Talvez a primeira coisa que observamos em “Algo sinistro vem por aí” é a separação que Bradbury faz daquelas duas metades de si mesmo. Will Halloway, o “bom” garoto (bem, os dois são bons, mas o amigo de Will, Jim, se perde por um tempo), nasceu em 30 de outubro, um minuto antes da meia-noite. Jim Nightshade nasceu dois minutos depois... um minuto depois da meia-noite da madrugada do Dia das Bruxas. Will é um apolíneo, uma criatura da razão e do planejamento, ele crê (na maioria das vezes) no status quo e na norma. Jim Nightshade, como sugere seu próprio nome, é a metade dionisíaca, uma criatura da emoção, algo niilista, destrutivo, pronto para cuspir na cara do diabo só para ver se o cuspe vai ferver e chiar, escorrendo pelo rosto do Senhor das Trevas.
Na história de Bradbury, um velho parque de diversões, maravilhosamente chamado Cooger & Dark’s Pandemonium Shadow Show, chega a Green Town, trazendo tristeza e horror, sob o disfarce de prazer e maravilhamento. Will Halloway e Jim Nightshade — e mais tarde também o pai de Will, Charles — percebem do que se trata exatamente esse parque de diversões. A narrativa acaba afunilando-se na direção da luta de uma única alma, a de Jim Nightshade. Chamar isso de uma alegoria seria errado, mas chamar de uma história de terror moral seria exatamente correto. Com efeito, o que acontece a Jim e Will não está muito distante da tenebrosa descoberta de Pinóquio na Terra dos Prazeres, onde os meninos que se permitem usufruir os desejos mais básicos (fumar e jogar sinuca, por exemplo) são transformados em burros. Quando Bradbury escreve aqui sobre as tentações carnais — não simplesmente a sexualidade carnal, mas a carnalidade em suas formas e manifestações mais amplas —, os prazeres da carne correm tão sem rédeas quanto as tatuagens que cobrem o corpo do Sr. Dark.
“Algo sinistro vem por aí” reflete as diferenças entre as vidas apolínea e dionisíaca. O parque de diversões de Bradbury, que se arrasta para dentro dos limites da cidade e faz comércio num campo às três horas da manhã é o símbolo de tudo o que é anormal, mutante, monstruoso... dionisíaco. O parque de diversões é o caos. É a terra magicamente portátil do tabu, viajando de um lugar para outro e até mesmo de um tempo para outro com seu carregamento de monstruosidades e suas atrações glamorosas. Os rapazes (Jim também, é claro) representam justamente o oposto. São normais, não são mutações, nem monstruosidades. Vivem suas vidas segundo as regras do mundo iluminado pelo sol — Will, complacentemente, Jim, impacientemente. E é justamente por isso que o parque de diversões os quer.
A essência do mal, Bradbury sugere, é sua necessidade de comprometer e corromper essa delicada passagem da inocência à experiência que todas as crianças têm de experimentar. No rígido mundo moral da ficção de Bradbury, os monstros que povoam o parque de diversões assumem em suas aparências exteriores os vícios interiores. O Sr. Cooger, que viveu por milhares de anos, paga por sua vida de sombria degeneração, tornando-se uma Coisa ainda mais velha, velha quase além de nossa capacidade de compreensão, mantido vivo por uma descarga constante de eletricidade, o Esqueleto Humano está pagando pela esqualidez de seus sentimentos; a mulher gorda, por glutonaria física ou emocional; a bruxa velha, por sua intromissão na vida de outras pessoas, pelas suas fofocas.
Na sua faceta apolínea, o livro nos convida a recordar e reexaminar os fatos e os mitos de nossas infâncias, mais especificamente nossas infâncias de cidade do interior americana. Escrito em um estilo semipoético, que parece se encaixar perfeitamente em temas como esses, Bradbury examina essas questões da infância e chega à conclusão de que somente as crianças estão preparadas para lidar com os mitos, terrores e emanações da infância.
(Stephen King no livro "Dança macabra". Texto editado. Para a versão integral da análise de King, recomendo fortemente o livro citado, particularmente o capítulo "A ficção de terror", no qual ele comenta não só esta obra de Ray Bradbury, mas também de outros autores do século XX)