Antonio Luiz 15/03/2010
Não faz muito tempo, os filósofos alemães Peter Sloterdijk e Jürgen Habermas protagonizaram o mais barulhento Fla-Flu filosófico desde os tempos de Jean-Paul Sartre e Raymond Aron, para surpresa dos ingênuos que acreditam que filósofos são seres tranqüilos e impassíveis.
Em "Regras para um Parque Humano" Sloterdijk criticou a tradição humanista e discutiu a emergência de uma nova sociedade pós-letrada e pós-democrática na qual os filósofos não estariam limitados a elucidar questões morais, mas discutiriam medidas práticas para aperfeiçoar a humanidade através da seleção genética.
Não é possível – principalmente na Alemanha – esquecer o que “aperfeiçoar a raça humana” pode significar. Houve quem sentisse ali um fedor de neonazismo. O respeitado Habermas pediu a discípulos e admiradores para atacar Sloterdijk, mas isso mais o promoveu que o desacreditou – e certamente pouco contribuiu para esclarecer o público sobre as sutilezas dessa polêmica que ganhou os meios de comunicação de massa e se fez ouvir deste lado do Equador.
Se o leitor quer uma oportunidade para avaliar sem preconceitos e de cabeça fria o cerne do pensamento de Sloterdijk – algo muito difícil quando se trata de eugenia –, "O Desprezo das Massas" oferece um caminho mais adequado.
Vê no iluminismo humanista um projeto de domesticação da humanidade através da igualdade: “a sociedade moderna investe em normalidade burguesa e por essa razão quer ver em toda parte pessoas em cujos motivos egoístas se pode confiar”. Hobbes aboliu a autojustificação da nobreza ao proclamar a tese de que todos os homens, sem exceção, são movidos pelo medo. Moralistas burgueses destruíram as premissas do ideal cristão de santidade altruísta ao garantir que o egoísmo é normal e benéfico para a sociedade.
Sloterdijk vê em todo programa de progresso e desenvolvimento uma ofensa ao destinatário, pois presume que o objeto ainda não é o que deve ser. Implica adotar a comunicação vertical e ditar suas exigências à massa. Ou então, escolher a comunicação horizontal para cinicamente a adular e assegurar-lhe que já atingiu sua meta. Esta contradição estaria no cerne do pensamento social-democrático, de Marx e Mao a Habermas e o norte-americano Richard Rorty.
Para Sloterdijk, como para Nietzsche, abolir as estruturas que produzem a desprezabilidade não suprime o desprezo das massas. Ser desprezível é algo objetivo – é a limitação demasiado satisfeita e exposta na auto-satisfação. Cultura é “provocar a massa em nós mesmos para decidir-se contra si mesmo”. É uma diferença para melhor que deve ser feita. É preciso admirar o talento, reconhecer o que é diferente e superior. Os filósofos de congressos e comissões, esses que colocam a democracia acima da filosofia e tacham de fundamentalista o filósofo-autor, não passam de “erva daninha”.
Se aceitarmos a definição de Norberto Bobbio – é de esquerda fazer da igualdade um valor central e é de direita considerar a desigualdade natural e necessária – é claro que Sloterdijk não é um esquerdista.
Mais que isso, basta cometer sutis deslizamentos semânticos – como já se fez com Nietzsche e Heidegger em outros tempos – para transformar muitas de suas provocações em slogans fascistas. Com os quais, o talentoso e intransigente filósofo-autor pode ser tão facilmente iludido quanto as massas amorfas e ignaras: Heidegger, pelo menos por algum tempo, viu nas camisas pardas a manifestação do Ser, com maíuscula e tudo.
Mas, apesar de lhe faltar a originalidade, o humor e a audácia do mestre Nietzsche, o pensamento de Sloterdijk também serve para desafiar quem dele discorda a deixar acomodação dogmática, pensar de verdade e superá-lo. Não haveria Derrida sem Heidegger, Foucault sem Nietzsche, nem Marx sem Hegel. Para o bem e para o mal, a direita pode oferecer pensamentos mais relevantes e instigantes que os de Plínio Correia de Oliveira ou Olavo de Carvalho.