Antonio Luiz 11/03/2012
Uma obra análise enviesada para poupar o catolicismo, lamentavelmente
Com o tema do fundamentalismo transformado em tema central da geopolítica das potências e obsessão da mídia mundial, toda forma de vida inteligente neste país sentiu uma necessidade aguda de entender com mais profundidade esse fenômeno e se surpreendeu com a escassez de estudos sérios sobre o assunto.
"Em Nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo", candidatou-se a ocupar um vácuo. Da escritora e ex-freira Karen Armstrong, conhecida dos leitores brasileiros por outros títulos sobre o relacionamento entre judaísmo, cristianismo e islamismo ao longo da história – "Jerusalém" e "Uma História de Deus" – ela dá sua visão do fundamentalismo em 490 densas páginas.
A informação histórica nele contida basta para afastar dois dos enganos mais comuns entre jornalistas apressados e analistas improvisados. O primeiro é pensar no fundamentalismo como um fenômeno principalmente árabe e muçulmano. O termo foi cunhado para descrever uma corrente do protestantismo estadunidense surgida no início do século 20. Só bem mais tarde foi estendido para incluir tendências mais ou menos análogas em outras religiões.
O segundo é pensar que o fundamentalismo é uma mera volta a um passado idealizado. Pelo contrário, é a busca de uma modernização alternativa. Os televangelistas dos EUA e os mulás do Afeganistão não repudiam a ciência e a tecnologia em conjunto: selecionam delas o que convém a suas crenças e valores. Clamar pela jihad via satélite e usando um relógio digital não é mais paradoxal do que defender na TV e na Internet que o mundo foi criado em seis dias.
O livro, porém, falha em extrair uma adequada visão geral do fenômeno e cai em um esquema tão dogmático quanto o dos próprios fundamentalistas e às vezes até mais simplista.
Segundo a autora, haveria duas formas de conhecimento. O "mythos" previne o desespero, explica onde estamos e dá sentido à vida, mas não é para tomado ao pé da letra, nem para desencadear mudanças concretas. Quando temos de fazer coisas acontecerem ou persuadir os outros, só cabe recorrer ao "logos". No passado a necessidade e separação de ambos teriam sido evidentes. Só na modernidade o racionalismo teria desprezado o mítico como mera superstição e provocado a reação fundamentalista, que consistiria em interpretar o mítico de forma literal, colocá-lo no lugar do lógico e dele extrair verdades científicas e normas morais, conduzindo a todo tipo de absurdos e atrocidades.
Porém, com ou sem fundamentalismo, nenhuma das grandes religiões jamais apartou totalmente o texto sagrado da realidade objetiva, nem a contemplação da vida prática. Todas esperam que seus fiéis sejam consequentes na vida concreta, como sugere, por exemplo, a parábola do Bom Samaritano.
Também é simplificar demais identificar fundamentalismo com literalismo. Toda leitura, por literal que pretenda ser, exige contextualização, opção e interpretação. William Miller, precursor do adventismo que anunciou para 1843 a Segunda Vinda de Cristo, “acabou por demonstrar o perigo de interpretar-se ao pé da letra o 'mythos' bíblico”, diz Karen Armstrong.
Mas a leitura de Miller não foi literal: exigiu, por exemplo, interpretar “2.300 alvoradas e crepúsculos” como “2.300 anos” (Daniel 8:13-14). Uns lêem na Bíblia a igualdade entre os homens, outros a justificação do racismo; estes o Big Bang, aqueles o geocentrismo. Tomado ao pé da letra, o Alcorão (Surata 24:30-31) não obriga as mulheres a esconder seus rostos: só diz que devem cobrir os seios.
Ainda mais importante, enfatizar o simbólico e as mediações entre o mítico e o lógico e acautelar-se contra o literalismo não previne a intolerância nem o fanatismo. É o caso do extremismo católico, ausente desta obra que estuda em detalhe os fundamentalismos judaico, evangélico, xiita e sunita.
Não foi pela inadequação do termo protestante “fundamentalismo”, pois não houve esse escrúpulo para com o judaísmo e o islã. Mesmo se “integrismo” for historicamente mais apropriado, parece difícil deixar de reconhecer aí um fenômeno com linguagem própria, mas causas e consequências semelhantes.
Apesar disso, Karen Armstrong vê precursores do fundamentalismo nos judeus expulsos da Espanha, enquanto os Reis Católicos que os perseguiram haviam trazido a “modernização”. Reformadores como Lutero estavam “arraigados no passado”, enquanto Inácio de Loyola encarnava “a marca registrada do Ocidente moderno”.
Análises mais isentas, completas e profundas da história do fenômeno fundamentalista continuam sendo necessárias. Reconheça-se, porém, o mérito de abrir um debate indispensável e de chamar a atenção para uma brilhante intuição do iraniano Al-Afghani, precursor do fundamentalismo egípcio: a modernização imposta de fora tem uma falha inerente e inescapável: “enquanto a modernidade ocidental florescera em grande parte graças à busca de inovação e originalidade, os muçulmanos só podiam modernizar sua sociedade mediante a imitação”.
O Afeganistão, as periferias do Brasil e os grotões dos EUA enfrentam o mesmo dilema: ser moderno é ser criativo. Como ser moderno quando só resta reproduzir uma cultura globalizada? Como dizia uma personagem da tirinha argentina Mafalda, só “no dia em que deixarmos de imitá-los e conseguirmos ser como eles vamos começar a ser como nós mesmos”. O fundamentalismo pode parecer uma saída dessa armadilha quando um povo perde as esperanças em bandeiras políticas mais racionais, como o socialismo e o nacionalismo.