Rodrigo1001 28/07/2018
Um olhar incomum sobre a escravidão (Sem Spoiler)
Em 2015, um grupo de críticos norte-americanos analisou 156 obras e elegeu “O Mundo Conhecido” como o segundo melhor livro escrito desde o início deste século. Vencedor do Pulitzer de 2004, do IMPAC, do National Book Critics Circle Award e do Anisfield-Wolf Book Awards, “O Mundo Conhecido” é uma narrativa ficcional sobre um escravo livre no estado da Virgínia que se torna dono de terras e de escravos.
Embora possa soar estranho, é historicamente correto: no século XIX, os escravos compravam o direito à liberdade com o próprio trabalho. Uma vez alforriados, alguns negros optavam por comprar escravos e utilizá-los em terras que arrendavam ou conseguiam adquirir ao longo do tempo. Eram ex-escravos negros que compram negros não libertos e os utilizavam como escravos. É como o que acontece em uma linhagem familiar com histórico de abuso infantil, o comportamento passa de geração a geração.
Em outras casos, os negros alforriados, no afã de reunir suas famílias, costumavam comprar seus parentes dos brancos que os mantinham como escravos em suas fazendas, sem, contudo, terem a possibilidade de dar-lhes a alforria. Logo, seus parentes continuavam sob o status de escravos, sendo vistos perante a lei como “propriedade”, como um bem físico do comprador. Não bastasse o sofrimento, viravam proprietários dos próprios parentes, sem poder libertá-los de fato.
São esses os assuntos principais do livro.
Impactantes, heim?
Outro ponto interessante é a narrativa em si. Há uma fusão entre presente, passado e futuro. Um parágrafo pode contar a história no momento presente só para dar um salto de 50 anos no próximo e então retroceder novamente, em uma linha do tempo elástica que não é pontuada por capítulos, como se vê na maioria dos romances não-lineares. O autor mergulha em todos os personagens, contando o que fizeram até ali e o que seria deles anos mais tarde. Dá pulos no tempo abrindo pequenas janelas no presente por onde pode-se vislumbrar o futuro. Essa é uma técnica que já havia visto em outros livros, mas, talvez, não tão bem costurada como neste livro.
Por fim, O Mundo Conhecido bateu na trave por um único motivo: cheguei nele por meio de outro livro com o qual concorreu pelo Pulitzer de 2004, chamado “A invisível Máquina do Mundo”, de Marianne Wiggins. Como eu simplesmente fiquei fascinado pelo livro de Wiggins (e sabendo que ele perdeu o Pulitzer para “O Mundo Conhecido”), eu esperava por uma experiência ainda mais fantástica. Infelizmente, ele não superou, mas, mesmo assim, é um excelente livro, que rende ótimos insights e promove bastante reflexão. Recomendo que você leia os dois, ok?
Pra fechar, não espere que o livro rode somente sob a dramaticidade do tema. O autor investe bastante energia em despir seus personagens, o estilo de vida local, o clima pré-guerra civil americana e leva a história de forma peculiar. É, em resumo, um lembrete constrangedor e doloroso de uma época quando, em nossos quintais, pessoas eram consideradas propriedade e as vidas eram dispensáveis.
Leva 5 de 5 estrelas.
Passagem interessante:
"Quem bate não pode nunca ser o juiz. Só quem recebe o golpe pode lhe dizer se foi forte ou não, se mataria um homem ou se faria um bebê apenas bocejar" (pg. 193)