Pandora 23/03/2023
Em "Ana Sem Terra" Alcy Cheuiche se propõe a navegar pela história recente do Brasil através da história particular de uma família brasileira de origem alemã cuja pequena porção de terra se encontra no Rio Grande do Sul. A história começa em 1958 e vai até 1990, um período de tempo tão grande pode fazer supor ser o livro um grande calhamaço, mas ele é bem sintético, entre um capítulo e outro o autor faz saltos no tempo. O primeiro capitulo acontece em 1958, no segundo já estamos em 1960, pode parecer esquisito, mas na prática funciona muito bem, a leitura é leve a ponto de ser possível ler o livro de um dia para o outro.
A família que acompanhamos é dos Schneider e, em nosso primeiro encontro a família é composta por um grupo de adolescentes e crianças órfãs: Gisela, a mais velha e chefe improvisada da família; Heide, uma mocinha que acabou de ter um filho e não sabe o paradeiro do companheiro; Willy, um rapaz que tenciona virar padre; e Ana, então uma criança. Em nosso primeiro encontro as crianças Schneider acabaram de perder o pai e estão defendendo o pedaço de terra que herdaram das mãos de um tio desonesto. O livro já começa com a tensão lá em cima e de onde menos se espera vem a salvação da lavoura familiar. Em um puro Suco de Brasil, a Gisela consegue o apoio do padre para ajudar ela a manter a guarda dos irmãos e a posse da terra.
Alcy Cheuiche é muito consciente de como o Brasil funciona, se a Igreja Católica Apostólica Romana foi muito cúmplice ao longo de nossa História de violências pesadíssimas, individualmente muitos padres se alinharam a resistência dos mais pobres, usando a influência que a batina confere para proteger os pobres e fracos diante dos mais ricos e fortes. Essa consciência de como acontece o jogo político e a luta de classes no Brasil no macro e no micro permeiam a narrativa inteira dos capítulos de "Ana Sem Terra" enquanto vemos Willy cumprir o serviço militar, conhecer uma família proprietária de terras, se tornar padre, se opor a ditadura militar, ser torturado enquanto sua família perder sua pequena propriedade e se vê dentro do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.
De capitulo a capitulo a gente vai vai avançando na história familiar dos Schneider e na própria História do Brasil, no clima anterior a Ditadura Militar, nos horrores da Ditadura, Cheuiche é muito claro ao falar de como os militares fizeram um governo corrupto, autoritário, violento, péssimo para as populações mais carentes do Brasil. Em determinado momento a história toma ares trágicos e dolorosos tal como trágica e dolorosa muitas vezes se torna nossa História dos Pobres no Brasil. Parece que a dor e a violência tem sido destinos inescapáveis para uma grande parcela da população brasileira menos favorecida.
A primeira edição de "Ana Sem Terra" foi publicada por volta de 1990, esse é um livro escrito a trinta e três anos atrás e nele já se encontra uma crítica a Anistia pós-Ditadura Militar em como essa atitude possibilitou a torturadores ocuparem cargos através dos quais puderam continuar a espalhar ódio e desigualdade pelo Brasil. A luz do que diziam pessoas conscientes dos caminho do Brasil em 1990, os fatos atualmente em destaque nos nossos telejornais da vida, o golpismo contra a democracia, a grande lavoura de soja invadindo florestas, o garimpo ilegal nas terras indígenas, o desmatamento da floresta para o gado bovino, o avanço da fome, o aquecimento global são tragédias antigas cujos desdobramentos foram anunciados.
A atualidade de um livro escrito 30 anos atrás me deixa aturdida e irritada, porém o mais surpreendente é que, mesmo tomando ares trágicos, o Cheuiche encerra sua história com um final incrivelmente otimista. É um livro que começa sendo histórico e ao final toma ares de ficção científica super otimista. Terminei a leitura absurdada com a capacidade do autor de pensar positivamente sobre o futuro, mesmo quando o presente tem ares tão sombrios. Claramente ele não contava com o quanto o brasileiro pode ser capaz de não ter empatia com o sofrimento dos oprimidos e normalizar a miséria utilizando um discurso meritocrático vazio de sentidos em um país tão desigual.
Apesar do século XXI a partir da sua segunda década ter tomado ares tão diatópicos, quero crer, tal como o Alcy Cheuiche, que o Brasil pode descobrir formas de preservar a História de lutas e resistência dos mais pobres desse país e assim para de viver um eterno looping de tragédias. Quem sabe algo de bom não nos aconteça e nós possamos dar uma guinada na nossa História para um lugar menos desigual? Tenhamos esperança!
site: https://elfpandora.blogspot.com/2023/03/ana-sem-terra-de-alcy-cheuiche.html