mpettrus 06/05/2024
?O Mistério da Vida na América Latina?
?Este relato deveria acabar aqui, mas a vida é um pouco mais dura do que a literatura.?
O ano de 2024 me fez descobrir a literatura de Roberto Bolaño.
Acredito que veio na hora e no momento certo da minha vida enquanto leitor. Encontro-me mais maduro tanto espiritual quanto intelectualmente. Claro, sempre há o que se aprender. Estamos em constante aprendizado. Bolaño me ensinou um pouco mais, sobretudo, de nossa América Latina.
? Essa é a segunda obra do autor que leio. E, surpreendeu-me igualmente tanto quanto o primeiro, que foi o emblemático ?Noturno do Chile?. Evidentemente, o impacto deste foi maior do que daquele, obviamente, por ter sido meu primeiro contato com esse autor. Mas essa obra deixou sua marca na minha vida.
? Aqui nesse livro temos uma coleção de histórias de Bolaño. Uma coleção de mistérios da vida na América Latina. A cada conto que lia, eu percebia que os personagens eram, por vezes, pequenos e fugazes; noutras vezes, grandes e indeléveis.
?A estatura microscópica de homens e mulheres retratados nos contos pelas mãos acolhedoras de Bolaño é habilmente dramatizada por uma narrativa sangrenta, inflexível quanto surreal, mística, melancólica em que os humanos são continuamente diminuídos ou, à medida que os observamos, reduzidos à insignificância, vagando pelo mundo afora - como em uma notável panorâmica de 360º.
?O niilismo que permeia os contos desse livro se faz notar nas primeiras páginas, nos trazendo o paradoxo da literatura ? totalmente incapaz de tornar o mundo um lugar melhor, nas palavras de Bolaño, mas também tão essencial como o ar para a vida tal como ele a conhece.
? O tema principal de Bolaño é a lógica do pesadelo que já existe. A América Latina do autor foi a América Latina das guerras do narcotráfico, do ajustamento estrutural e, acima de tudo, de Pinochet e dos outros ditadores que mataram, pelo menos durante uma geração, quaisquer esperanças fugazes que o continente tivesse anteriormente de forjar o seu próprio caminho.
?A violência permeia seus momentos surreais da mesma forma que a maravilha permeou o realismo mágico. Talvez, por isso, eu não perceba com mais clareza o seu realismo mágico.
? É fácil compreender por que Bolaño não vê o fascismo como algo escondido sob uma máscara de normalidade. Nas suas histórias, a normalidade e o fascismo constituem-se mutuamente; no seu aspecto mais remoto, o fascismo são as normas ? normas masculinas acima de tudo, mas normas de família, religião, nação, cultura em geral ? militarizadas e libertadas para governar pelo terror.
? A violência de um policial fascista se transforma na violência dos torcedores do futebol, que se transforma na violência dos executores dos cartéis, que se transforma na violência do exílio e do mal-estar, de vidas apertadas, dependentes de empregos precários e de patrocínio literário ainda mais precário.
? Tudo isso se expressa em grande parte através da violência contra as mulheres. Além disso, o fascismo (num sentido fenomenológico, se não num sentido estritamente político) vive na decisão de ver tudo isto como normal, bom, mesmo que produza resultados espetaculares, surreais e horríveis.
? Eu, enquanto leitor latino-americano, apreciador voraz da nossa literatura, não me é estranho à forma como o autor combina política e poesia. Não quero dizer apenas que ele é um poeta que escreve sobre política, embora isso seja verdade.
Não, a estranheza vem do fato de que praticamente todos os personagens, sejam bons ou ruins, se preocupam apaixonadamente tanto com a poesia quanto com a política se revelando curiosamente interligados.
? Se eu tivesse que nomear uma qualidade única que tornasse a ficção de Roberto Bolaño convincente, seria a sua capacidade de simpatia rigorosa e intransigente impregnada nas suas palavras, apenas para conceber o perdão divinamente inspirado pela bondade, ainda que Bolaño nunca se esqueça dos crimes da humanidade, porque eles são, afinal, o seu tema principal: sua própria mente e a mente dos outros, mesmo quando esses outros são assassinos, ou hipócritas, ou loucos, ou críticos literários.
? Para mim, já ficou claro que o teste mais importante pelo qual Bolaño passa triunfalmente como escritor é que ele faz você se sentir mudado por tê-lo lido; ele ajusta seu ângulo de visão sobre o mundo.
Sua visão pode ser perturbadoramente sombria, mas nunca é fria: humor e a compaixão sempre andam de mãos dadas.
? Por fim, deixe-me dizer-lhes que se me é difícil ver com clareza o realismo mágico desse autor, digo-lhes que ele é melhor em capturar um estado onírico, descrevendo os sonhos, de maneira que são ao mesmo tempo carregadas de significado, mas ainda assim soando verdadeiramente como sonhos.
? E, claro, todo mundo sabe que não se deve escrever ficção com sonhos, mas acho que deveríamos apenas dar uma chance para esse autor. Ele sabia o que estava fazendo. Sou-lhe muito grato por ter escrito essas coisas. Literatura realmente incrível.
Alguns contos são melhores do que outros. Mas você sente a 'alma latina' que ele pinta você se perde na narrativa e aos poucos vai descobrindo o que está acontecendo. Um pouco como passar de um labirinto a outro.
? Bolaño cultivou um novo e eletrizante estilo dialético que combinava imaginação com objetividade, frieza com empatia, realismo com paródia, reflexão com narração, comédia com utopia, ironia com desespero, loucura com tristeza.
? Mal posso esperar para ler outra obra desse autor para reconhecer na sua próxima história o clima sombrio e o ambiente incomum, que perpetuou a fama póstuma quase mítica de Bolaño.
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