Não nos enganemos: as águas que Manoel de Barros guarda não são límpidas, nem tão cristalinas como o que, a princípio, pode ser evocado pelo nome deste livro. O GUARDADOR DE ÁGUAS não é atraído pela beleza das coisas, mas pela doença delas. Por isso, é da natureza dos mínimos seres aquáticos que o guardador nos fala. São as larvas, as rãs, os escorpiões de areia, os seres que habitam a líquida matéria. E, menos que personagens, menos que objetos evocados pela voz do guardador, esses seres são, eles próprios, a coisa que pulsa, que fala, que faz a poesia de Manoel de Barros.
Água de palavra. Água de letra. Água de escrita. É possível escrever na água? Em dialeto-rã, este livro se escreve. São macerações de sílabas, inflexões, elipses, refegos, o que ouvimos, quando ouvimos não apenas o guardador, mas as águas que ele guarda. É de bom-tom que não nos apressemos: as águas aqui não correm, antes escorrem, mornas, no ritmo dos pântanos ou no olhar mudo de Bernardo.
Se as coisas são as coisas e mais nada, o ofício do poeta será não exatamente falar delas, mas deixá-las falar nele, e só depois escrever, entre o coaxo e o arrulo, essa poesia de líquida matéria. Cabe ao poeta, então, escrever o que sobra das águas que escorrem: húmus, barro, dejetos. Escrever o que sobra das águas e vai apodrecer nas margens — o resto. Disso sabe bem o guardador: que a água escreve, que o húmus faz poesia, que o resto é literatura.