Um menino, dividido entre a mãe e o pai divorciados, é usado num jogo de ciúme que vai testar os limites de sua força - ou fraqueza.
“Quando a campainha tocou pela segunda vez, o menino estava quase todo vestido, mas faltava que o pai lhe abotoasse o casaquinho listrado. A operação foi interrompida para que o homem caminhasse até a porta, aos gritos de “já vai, já vai”, e num instante entrou pela casa uma rajada de vento que arrastou algumas folhas para o tapete, junto com a mulher de saltos muito altos.
“Venha logo, Heitor. Não me faça esperar mais”, ela disse, estendendo-lhe a mão de onde estava. O menino caminhou como se tivesse os sapatos molhados, mas afinal alcançou a mãe. Só então ela se dirigiu ao homem e perguntou se estava tudo certo. Ele pareceu se espantar e tentou sorrir, dizendo que sim, o fim de semana tinha sido ótimo, ele e o filho se divertiram bastante, foram ao parque, ao cinema... A mulher escutou as frases iniciais e interrompeu: “E o Heitor ficou comportado?” O pai confirmou, agora se agachando para fechar os botões do casaquinho — mas a mulher não parecia satisfeita e insistiu: “Tem certeza de que ele não fez nada errado?” Quando perguntou isso, o rosto do pai estava no mesmo nível da cabeça do filho; por um instante os olhos de ambos se cruzaram, como num reflexo de espelhos. Depois, o menino desviou sua atenção para a mesinha distante, ao lado do sofá, e quis que o pai entendesse a mensagem, num jogo mudo e cúmplice que eles nunca haviam treinado. O homem, entretanto, levantava novamente o corpo, destravando os joelhos e deixando à frente de Heitor apenas duas pernas, fixas como troncos. “Foi um anjo”, respondeu.(...)”
Contos