Os últimos dias

OS ÚLTIMOS DIAS reune a trilogia de monólogos femininos e uma peça dialógica de Rodrigo de Roure, textos complexos que refletem sobre o padrão de feminilidade. São personagens enclausuradas, em situações limite.
Já em Senhora Coisa, sua primeira peça, o autor enfoca na construção sócio-cultural da identidade feminina. Águida, uma mulher dos bons velhos tempos, passa em revista sua vida: "Meu marido se chamava Jesus. Eles disseram que tenho filhos. (...) Todos homens, coitados. (...). Eu sou homem. (...) Mamãe fazia o que queria. Antes do almoço cantava o Hino, de manhã também.“ Seu esquecimento, sua loucura, suas contradições, o cômico e o surreal de sua fala são resultado de algo mais do que simples velhice: são um ato de subversão contra uma sociedade marcada pela autoridade masculina, pela igreja, pelo chauvinismo e pela instituição da família.
Na personagem em Os Últimos Dias de Gilda, o autor reúne fragmentos de diferentes padrões femininos (como a santa e a prostituta). Ele recorre a divas do cinema ou a figuras míticas, como a feiticeira Circe que transforma homens em porcos. Gilda é muitas: "E o que eu sou e o que eu não sou, não importa, nem sei mais o que sou, bobagem, acho tudo bobagem..." Ela seduz todos os caras no seu bairro, adora cozinhar, provoca a má vontade das mulheres, mas, por outro lado, atormentada e doente, esconde-se em seu casebre, onde cria galinhas e porcos para sobreviver, enquanto lá fora rebenta uma guerra. Seu monólogo frenético evoca a utopia de um mundo de paz e beleza - que necesseriamente falha. Oscilando entre a alegria de viver e a ansiedade, sua fala poética e emocionante cria um espaço de esperança.
O terceiro monólogo, Inferno, tem a autoria conjunta de Rodrigo de Roure e Luiz Felipe Andrade. O texto enfoca a relação entre senhor e criada e se move em direção a uma forma mais aberta: a criada está em uma situação de interrogatório, no entanto, ela permanece impalpável, dividindo-se em muitos seres. Graças a um jogo em cena com as falas, as situações são mostradas a partir de várias perspectivas. A língua se torna a protagonista, invocações, maldições e declarações contraditórias fazem emergir um mundo de humilhação e revolta. Vânia, a muda, a oprimida, finalmente deixa o inferno dos seus patrões perversos e racistas. A cauda que aparece um pouco por baixo da sua minissaia indica suas conexões diabólicas.
Seguindo seu interesse por explorar as mazelas da população feminina e marginalizada, Roure escreveu Sangria, uma peça mítica-expressionista, na qual mulheres de uma favela se insurgem contra a opressão masculina e o poder paralelo. São como mulheres selvagens, agindo como antigas mênades, frenéticas, que caíam sobre o homen. Assim, Rodrigo de Roure vai entesando o arco entre o antigo e o presente (como já em Gilda): evitando caracterizações simplistas e dando grande impacto ao que está acontecendo agora, sem clichês.
A editora Zuckerhut Theaterverlag com sede em Munique coloca seu foco no teatro brasileiro, em grande parte por dois motivos: em primeiro lugar, porque eu, Angela Meermann, cresci em São Paulo, e lá acompanhada por minha mãe vienense que adorava teatro, vivi minhas primeiras e inesquecíveis noites de teatro. Em segundo lugar, porque, em tempos de globalização o assunto interculturalismo ganha importância no universo teatral ocidental. Os textos de Rodrigo de Roure ilustram bem porque a editora quer apresentar teatro brasileiro em países de idioma alemão.
O autor entrelaça brilhantemente diferentes níveis entre si. Questões como a violência, opressão, relações de gênero, os conflitos com o alheio, com o racismo e, por fim, a autorreflexão do teatro criam um panorama crítico à política.
Concluindo: o teatro é sempre político; o teatro traz conhecimento, mas também é um lugar onde a arte de apresentar e representar prevalece e desperta emoções. E Rodrigo de Roure é um mestre desta arte.

Angela Meerman

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