PORTAL NEUROMANCER

PORTAL NEUROMANCER Ana Cristina Rodrigues


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PORTAL NEUROMANCER





A revista Portal surgiu graças a uma iniciativa do Nelson de Oliveira que, mais e mais, vem se aproximando da literatura fantástica ou ao menos se assumindo como tal. É tecla que sempre bato e engraçado usar o termo assumir, mas a ficção-científica e a fantasia sofrem de um preconceito antigo dentro do meio literário, então o termo cai bem. É costume dizer que as editoras ainda estão descobrindo o fantástico, mas aí estão Harry Potter, Crepúsculo e as obras de André Vianco, todos extremamente lucrativos, para mostrar que as editoras não só conhecem o fantástico como também o seu potencia de retorno.



A que tenho em mãos é o segundo número de seis portais, a Portal Neuromancer. Cada uma das revistas homenageará uma obra importante da ficção-científica. A primeira se chamou Solaris, os próximos serão Stalker, Fundação, 2001 e Fahrenheit. A obra não é comercializada em livrarias e cabe a cada autor presentear os amigos com os exemplares que possui (ou reservar uma parte para vendas diretas).



Esse número traz contos de Fábio Fernandes, Roberto de Sousa Causo, Geraldo Lima, Ataíde Tartari, Marco Antônio de Araújo Bueno, Lima Trindade, J.P. Balbino, Rogers Silva, Tiago Araújo, Jacques Barcia, Luiz Bras e Ana Cristina Rodrigues, com a coordenação editorial do Nelson de Oliveira.



Portal Neuromancer Engraçado que dia desses lia o jornal Rascunho de dezembro e esbarrei com um conto do Luiz Bras, uma ficção que começa assim:



“Aos sete anos eu encontrei a máquina do tempo estacionada bem no centro do quintal de casa. Ela não era feita de metal e plástico e vidro e fios e botões. Ela era feita de luz e sombra e música e perfume e bolhas de sabão. Eu viajei muito nela. Depois eu cresci, a máquina do tempo desapareceu e eu percebi que essas engenhocas maravilhosas surgem apenas para as crianças”.



Luiz Bras é pseudônimo do Nelson de Oliveira. Um pseudônimo capaz de colocar ficção-científica no jornal literário do país, viajar no tempo quando criança e criar agitos literários com essa nova revista. Vamos a ela.



Sem uma ordem definida, fui direto aos nomes que conhecia e resenho uma parte. Ana Cristina Rodrigues participou com o conto O Templo do Amor e me agradou bastante o fato de não ser uma repetição conceitual do seu conto na revista Terra Incógnita. A linguagem é diferente, o clima é diferente, possui uma identidade própria. Conta a história de um matador, um dos melhores de todo o universo, que um dia precisa matar a sacerdotisa do templo do amor, curiosamente uma ex-amante. A Ana Cristina sugere que os homens, espalhados pelo universo, fizeram renascer o paganismo, mas ao invés de cultuar deuses, cultuam forças: destruição, amor, ódio, morte e vida. Daí a morte ter que enfrentar o amor. Mudam os nomes e as vestes, mantém-se o fanatismo. A boa sacada é fazer o matador ser contratado por uma mulher que quer ser sacerdotisa do amor para matar a atual ocupante do cargo. Nem o amor resiste à política.



“O advento das máquinas e de uma civilização universal trouxe de volta certo nível de obscurantismo. Deixamos a prisão de vivermos em um único sistema solar, mas voltamos a nos abrigar na sombra de religiões múltiplas. (…) As sensações guiavam a humanidade como faróis corruptos”.



Luiz Bras (!) participa com Aço contra osso, foneticamente reverberante e de certo modo síntese do embate homem x máquina, realismo x ficção. Nele o protagonista se vê diante de trinta e um clones seus. Ele precisa descobrir qual deles comanda os demais, como nas brincadeiras de criança sentadas em roda, com uma iniciando os gestos que as demais imitarão e com alguém vindo de fora para tentar adivinhar quem é o chefe. O primeiro confronto se passa em uma grande catedral, uma equação matemática a ser resolvida para que se entenda quem afinal é o líder. Me chamou atenção a capacidade de Bras de através de figuras de linguagem dar ao seu cenário uma força tridimensional. A conversa entre gato e rato é o de menos, enrolação. A resposta é sempre matemática. Uma evolução do Playstation movida a filosofia. Tem ecos de Spider, do Cronenberg.



“As outras cópias passeiam pela catedral admirando as obras de arte, tentando tocar a luz colorida que atravessa os vitrais, acendendo as velas apagadas pela brisa perfumada. Enquanto isso eu penso: qual deles?”.



Jacques Barcia participa com dois contos: Meu nome é interno e Pequeno punho do outono. Gostei mais do segundo devido ao ritmo singular do texto, essencial para a ambientação oriental ligada a monges guerreiros e a práticas de Chi Kung, exercícios que tem a ver com a circulação de energia pelo corpo. Jacques dialoga com as fábulas orientais, falando de inspiração e poesia. Enquanto o mestre conta a história, a personagem Brisa Leste faz o treinamento de Chi Kung, passando por dificuldades e superações. As histórias paralelas foram uma boa solução para mostrar o (des) equilíbrio entre mente e corpo. Forma e conteúdo bem integrados.



“Ela cruzou os pés novamente e se agachou, o joelho esquerdo apenas pouco acima do solo, depois socou e defendeu com harmonia. Ela dançava e sentia mais uma vez o arrepio do chi. Partiu da nuca, percorreu a espinha e deixou as mãos em brasa, até ser liberado numa explosão de luz esverdeada”.



Missão especial, de J.B. Balbino, é uma carta escrita por um marinheiro ao seu almirante, relatando o contato que teve com uma nave espacial e um alienígena. É o conto mais tranqüilo de se ler, não exige demais do fôlego do leitor e tem como compromisso contar uma boa história. A escrita me atraiu mais do que a trama, mas considero parada obrigatória da revista. O jeito como o autor transmite os sentimentos do marinheiro, um discurso ainda anestesiado pelo ocorrido, vale o texto. Para melhorar, como é um relato em primeira pessoa, cabe ao leitor acreditar ou não no depoimento. Traumatizado ou assassino mentiroso?



“Pelas onze horas da noite, o primeiro fato estranho aconteceu. Na ocasião conversávamos eu e o tenente, próximos à proa, quando subitamente um nevoeiro nos cobriu. De início não fiquei assustado, pois nevoeiros são comuns em viagens como aquela, mas, junto com a névoa branca, percebi que o ar ficou mais pesado”.



Do Lima Trindade gostei muito de Fim de linha. O personagem Nelson entra em um ônibus e dorme. Quando acorda está em uma espécie de lugar nenhum, onde todas as casas são as mesmas, todos os quarteirões são iguais. O autor descreve uma clareira, o personagem supõe o ônibus quebrado na tentativa de entender o que mais está fora da ordem em sua vida. Não bastassem os problemas pessoais, agora estava lá, em um lá que não era real. Nesse retrato do vazio, pintado com jeitão de ficção, Nelson encontra outros personagens, pergunta, quer saber, mas ninguém fala nada. No império do desânimo, a máxima expressão é uma lágrima no rosto. A falta de entendimento faz Nelson mergulhar cada vez mais no obscuro cenário em que se encontra. Uma boa surpresa esse conto sobre a incomunicabilidade humana.



“Despertou com a sensação do corpo formigando e a surpresa de não estar mais em movimento. As sombras lentamente abandonavam seus olhos, recaíam tímidas nos assentos. Percebeu-se só. Primeiro, o sentimento de embaraço. Depois, o esforço para localizar-se. (…) Levantou. Ainda não escurecera totalmente, tudo se afigurava sem contornos, apagado, fugidio”.



Ataíde Tartari participa com O triângulo de Einstein, a história de um triângulo amoroso criado por um rasgo no tempo e no espaço. Dentro de uma nave, o autor narra várias etapas de um relacionamento. Um casal, o aparecimento de outra mulher, as escolhas, o erro, a briga e a solidão. É o tipo de conto que é mais interessante lido do que comentado, porque o processo de criação em si faz parte da proposta. O ar nonsense também ajuda na composição.



“Naquela primeira noite do reencontro com Anya, Áster ampliou sua cama juntando outra ao lado, colocou champanhe num balde de gelo sobre a mesa de cabeceira e providenciou uns biscoitinhos que imitavam morangos. A cortina e a cama de Esther continuavam no mesmo ambiente, mas sobre isso ele nada podia fazer. Por sorte ela estava no observatório quando os gemidos de Anya ficaram mais altos”.



Para fechar, o conto Director’s cut de Fábio Fernandes. Por ser cinéfilo e roteirista sou suspeito para dizer que gostei, mas como nunca declarei imparcialidade digo mesmo assim. O Fábio faz a seguinte brincadeira: Paulo Emílio, o protagonista, assiste a O coração das trevas, de Orson Welles, baseado no livro homônimo de Joseph Conrad. O livro é para muitos uma obra-prima e Orson Welles é ninguém menos que o diretor de Cidadão Kane, filme que vira e mexe ganha o título de melhor da história do cinema. O detalhe? Esse filme nunca existiu. Mas está lá, na cinemateca onde ele trabalha, bonitinho no arquivo, com créditos no final e tudo mais. Durante o conto aparecem outros filmes dos sonhos e a graça é mesmo essa. Que filmes gostaríamos de ver que nunca foram realizados? Que diretor ou ator escalaríamos para um texto que não nos sai da cabeça? O que faltou na filmografia de Kubrick? A contrapartida é ter que substituir uma das obras da filmografia real, afinal o espaço do arquivo é limitado. Como o texto tem uma escrita simples, a leitura voa. Cabe ao leitor juntar as peças no final e tentar entender o que Paulo Emílio realmente descobriu nos corredores da cinemateca.



“Quando sai da sala de projeção da Cinemateca, é tarde. Tranca a porta e leva a chave. Caminha devagar, sentindo o ar abafado do verão carioca. Está louco para chegar em casa e tirar o terno, mas o que acaba de ver é no mínimo desconcertante”.



É cedo para dizer o que a revista Portal vai representar ou se vai conseguir romper fronteiras e apresentar a faceta mainstream à da ficção e vice-versa, mas inventar o futuro não parece ser problema para nenhum dos participantes.

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Ozimar Júnior
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18/03/2009 19:41:19

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