Djeison.Hoerlle 14/07/2021
Cá venho eu, após um bom tempo ausente, tempo este que dediquei principalmente ao trabalho, à escrita de meus quadrinhos autorais e também à vivência de minha própria vida, um dos fatores que mais costumo negligenciar. Mas sem lamentações de millennials sobre o dinamismo do século XXI, por favor. Vamos ao ponto.
O fato é que Homem-Animal, no mapa mental que organizo da história dos quadrinhos, aparecia em um terceiro lugar atrás de Sandman e Monstro do Pântano (que inclusive não li ainda). Por quê? Porque Sandman é imbatível e porque Alan Moore é Alan Moore. Escolha fácil, em uma mente acelerada.
Junto de seu degrau mais baixo do pódio, vinha também a imagem de um careca de rosto impessoal chamado Grant Morrison, junto de algumas notas mentais com termos como "psicodelia", "metalinguagem" e "veganismo", que, à exceção do segundo, que me é muito caro desde a catártica leitura de Memórias Póstumas, me são pouco ou nada caros. E bem, após 712 páginas de Homem-Animal, continuam não sendo.
Veja bem, não é que o autor não as tenha empregado de forma assertiva, é só que Homem-Animal vai muito além destes termos que insistimos em associar. Tem metalinguagem? Muita. Mas poucos para para falar sobre a precisa satirização do gênero heróico que Grant Morrison nos entrega. A construção da dinâmica da ascensão de Buddy em um mundo já superlotado de seres com poderes foi uma daquelas sacadas geniais que qualquer autor teria vomitado ao longo de uma única edição, mas que o escocês conseguiu esculpir de forma magistral ao longo de pelo menos 12 edições.
Preciso ainda abrir um parágrafo para falar sobre a questão dos animais. Eu sou um gaúcho sensível, o que implica na existência de um interminável cabo de guerra dentro de minha consciência. Por um lado, alguma das minhas melhores memórias envolvem a degustação de um churrasco em um domingo ensolarado na chácara da família, memórias essa que vão desde o menino com cabelo de tijela que um dia fui ao adulto de tamanho mediano e sobrancelhas espessas. Mas devido à supracitada sensibilidade, me vejo constantemente abalado com todo tipo de desrespeito à existência dos animais. No tempo em que escrevo esta resenha-diário, posso dizer com sinceridade que dos meus 4 ou 5 melhores amigos, pelo menos 3 possuem quatro patas.
O tal cabo de guerra, entretanto, se viu uma vez mais abalado, mas desta vez para o lado da sensibilidade. A forma como Grant Morrison personifica os animais em algumas de suas histórias é brilhante. Fugindo de obviedades como as fábulas costumam ter, o que vemos aqui são lapsos de narrativa, conhecimento de biologia e militância, todas perfeitamente condensadas.
Sei que estou me alongando, mas foram 712 páginas, então me sinto em tal direito. Prossigamos.
Outro aspecto que me surpreendeu demais foi a dinâmica de Buddy e sua família. Fugindo de entonações óbvias e clichês, há um aspecto tragicômico na maioria das interações entre seus personagens que me é muito cara (assim como para a maioria dos britânicos). Para se ter ideia, a esposa de Buddy, Ellen, é artista de livros infantis, profissão essa que talvez evidencie um pouco da metalinguagem que seria trazida posteriormente. Apesar de não raramente se queixar do mercado, repleto de flutuações e desigualdade, é Ellen que segura as pontas. Buddy consegue ser ainda mais sonhador e desprendido, precisando muitas vezes de alguns puxões para voltar à realidade, mas nunca na dinâmica esposa corta-barato. Existem filhos que precisam ser alimentados, e uniformes caros de herói não são comestíveis.
Visualmente, não há nenhuma genialidade, no entanto, e isso não se deve somente aos ilustradores. Grant Morrison é genial em suas dinâmicas e diálogos, principalmente aqueles com efeito reverberante no final das cenas, mas não cria grandes composições visuais para seus artistas, tampouco estruturas complexas e precisas como as de seu rival. É apenas uma história desenrolando-se da forma que pôde, sem querer ser mais do que é, o que é complementado pelas ilustrações totalmente zeitgeistianas, pouco chamativas sob qualquer aspecto.
E embora este último tenha sido um parágrafo duro, meu coração está amolecido. Sim, eu sabia que tudo acabaria bem, mas isso não me impediu de chorar com Buddy a perda de sua família, assim como não me impediu de rever meus hábitos de consumo animal, de rir com um herói fracassado ou mesmo de me afeiçoar por ele justamente por seus defeitos.
Homem-Animal é uma obra prima. Vale cada centavo. E eu sei que não são poucos.